Os meses passavam quase tão rápidos e violentos como uma enchente a inundar uma cidade. Os dias eram em sua maioria cinzentos e abafados, e o tédio só não era pior que aquela velha sensação deprimente que a perseguia pelos cantos. Em resumo, tudo parecia exatamente igual aos dias prévios àquela tarde no Ibirapuera quando conheceu Timothée. O único sentimento diferente — a saudade que sentia do amigo, dos tempos em que rir era algo comum — por sorte ainda resistia, um pouco enfraquecido pela névoa lúgubre que teimava em pairar sobre si, piscando como uma lanterna de pilhas fracas em algum lugar de seu lobo frontal.

O convite chegara num momento repentino. De fato, não o esperava. Estava tudo tão corrido e entediante que quase não tinha tempo para pensar em sair de casa por outras razões que não fossem trabalhar ou ir ao supermercado. É claro que pensava em Timothée — bastante, apesar de não conseguir categorizar o que exatamente sentia pelo tal. Tentava evitar tal linha de pensamento para não acabar confessando que, bem lá no fundo, sabia que o rapaz era o verdadeiro motivo pelo qual seu coração batia mais rápido quando estava em sua companhia. A verdadeira razão por trás da timidez e das bochechas coradas, dos sorrisos súbitos e aparentemente sem porquê. Que bonitinho.

E foi por essa razão que resolveu vestir o vestido mais bonito que encontrou em seu guarda-roupa, mas nada muito rebuscado. Borrifou um pouco de seu perfume de sempre, com cheirinho de baunilha, aplicou uma maquiagem básica para não parecer tão abatida e despejou um pouco de ração na tigela de Bolacha, se despedindo do mesmo com um abraço. Quase esqueceu-se de pegar o presente que havia comprado para ele: um amigurumi do Doutor Estranho, seu personagem favorito. Escolheu o presente enquanto caminhava pelas galerias de artesanato da Cerqueira César, imediatamente lembrando-se do amigo querido. Enfiou o braço por entre as abas da sacola e vestiu a bolsa à tiracolo. Deu um último suspiro antes de se retirar do apartamento, tentando compreender suas próprias expectativas.

Pediu um Uber pelo aplicativo de celular até o endereço do hotel onde o amigo estava hospedado, passando pela rua Augusta e admirando pela janela o céu acima de si, este um pouco menos acinzentado. A cinco minutos de distância, comunicou ao amigo que estava chegando, para que o mesmo se dirigisse ao saguão de entrada do hotel. Era estranho retornar a uma realidade pela qual tinha se mantido distante por tanto tempo. Seu coração pulsava rapidamente no momento em que se despediu do motorista, abrindo a porta e adentrando o edifício, logo avistando o garoto. Não se conteve em correr até o mesmo e abraçá-lo num salto pueril, o momento regado por sorrisos. Foi firme em seu abraço, e, quando este a soltou, a mesma manteve as mãos em seus braços, as quais escorregaram até as próprias mãos do mesmo, as apertando numa demonstração de saudade. "E aí, Gringolino?", sorriu enquanto olhava em seus olhos, alegre.

O percurso da recepção até o quarto de hotel fora animado, por parte dos dois. A viagem de elevador, todavia, pareceu durar um pouco mais do que a realidade, e a sensação de passar alguns segundos enclausurada num pequeno espaço na companhia do estrangeiro deixou a garota um pouco apreensiva devido aos sentimentos estranhos que se multiplicavam dentro de si desde o dia em que se conheceram.

"Estou bem, eu acho. Caminhando", soltou a resposta padrão numa tentativa de despistar qualquer conversa que abrangesse sua vida emocional. "E você? Tudo certo por aqui?", inquiriu, encostando-se na parede do elevador. Dizem que esse hotel é ótimo, afirmou, aliviada pelo som das portas abrindo. Iriam mesmo comemorar o aniversário do garoto em seu próprio quarto de hotel? Seria aquilo uma emboscada de uma rede de tráfico humano? Estaria num avião para Istambul nas próximas quatro horas? Meneou a cabeça, tentando espantar os pensamentos intrusivos.

Esboçou uma expressão de surpresa ao adentrar o quarto. O local havia sido decorado, aparentemente pelo próprio Timothée, para dar um ar mais comemorativo. Eduarda se sentou aos pés da cama, arremessando a bolsa em qualquer lugar. Seu foco caía sobre a sacola que segurava no braço direito, a qual entregou para o amigo com um sorriso no rosto e bastante expectativa. Esperava que o mesmo gostasse, afinal, lembrou-se imediatamente do mesmo quando encontrou o bonequinho na galeria. Observou sua expressão se transformar de surpresa para um pequeno sorriso enquanto o mesmo retirava o item de dentro da sacola: um amigurumi do Doutor Estranho, seu super-herói favorito.

Eduarda fixou o olhar nos olhos do garoto por um momento, antes de vê-lo sentar-se na cama, próximo à si. Assentiu para o que disse: a sensação era conhecida pela jovem. "Eu também, gringucho", suspirou, apoiando os braços atrás de si. Tornou a fitá-lo por um instante, o pensamento longe e atordoado. Levantou-se da cama num salto, prestes a surrupiar um punhado dos doces que estavam espalhados pela mesa. Um pouco de açúcar não a faria nenhum mal.

"Tá faltando uma musiquinha, não tá?", disse, dando uma mordida numa das cobrinhas doces revestidas de açúcar. Espanou o açúcar das mãos e caminhou em direção ao que imaginava ser um violão encapado. Perguntou se poderia experimentá-lo, logo retirando a capa protetora, apoiando o instrumento em seu colo enquanto sentava-se aos pés da cama. Checou a afinação, desbravando-se num acústico de "All Star", do Nando Reis, um de seus artistas favoritos. Coincidentemente (ou não), calçava seu próprio par de All-Stars (azuis). Cantava baixinho e de maneira tímida, concentrada no que fazia e sem prestar muita atenção em seus arredores. Tocava calmamente, devorando alguns dos doces no processo, os pezinhos se movendo para frente e para trás, pendendo sobre o chão.

O beijinho na bochecha fora decerto uma surpresa para Duda, que nunca esperaria uma atitude tão evoluída vir do tímido garoto. Em resposta, arqueou as sobrancelhas, demonstrando fascínio e tentando esconder as borboletas no estômago que se multiplicaram devido à aproximação carnal entre os dois.

O dedilhar sobre as cordas do violão era uma sensação conhecida. Havia aprendido a tocar sozinha após herdar o violão antigo de seu pai, o qual mais tarde deu para seu irmão. Mas o instrumento tinha sido uma boa companhia  naquelas tardes solitárias e soturnas que se seguiram após seu mundo desabar sobre sua cabeça. Gostava de um pouco de tudo, desde a bossa ao rock 'n' roll. Sabia tocar apenas uma pequena quantidade de músicas, assim, de cabeça — cifras eram sempre bem-vindas.

"Não, né? Como você não conhece essa música? É linda...", o respondeu com um sorriso. Nando Reis era um de seus compositores favoritos. "Nunca tentei", mordeu o lábio inferior, tentando lembrar-se de alguma outra canção que soubesse tocar sem a partitura. "Essa. Essa você tem que saber, senão não sou mais tua amiga", arrastou os dedos finos pelas cordas com um pouco mais de firmeza, tocando os acordes iniciais, lentos e cândidos. Um conhecedor nato da música brasileira já saberia de que música se tratava — invocando o saudoso Tom Jobim, Eduarda cantava baixinho as primeiras notas de "Eu sei que vou te amar", conhecida pela maioria dos brasileiros (decentes).

Após a pequena jam session que ocorreu nos momentos seguintes, a garota retornou ao seu estado de abstração que a dominava em momentos de ponderação, sempre olhando para baixo, nos lábios um meio sorriso. Não sabia o motivo de estar tão hesitante em relação aos seus sentimentos, afinal, desde a catarse que fora a morte de seus pais, vinha abordando um estilo de vida num plano mais kafkiano.

Fôssemos francos, estava bastante claro que tudo o que a menina sentia beirava as bordas de uma paixão talvez não ainda acesa. Cada momento de aproximação entre os dois remetia a um palito de fósforo a riscar a superfície de sua respectiva caixa, resultando numa cadeia ambígua de possibilidades: quando o fósforo se acenderia, afinal?