Em que momentos a ilusão era melhor do que a realidade? A resposta para esta pergunta era muito tênue, dependia de uma centena de minúsculas impressões, fatos e uma imensidão de sentimentos que tinha de ser reprimida e reacessada a cada encanto. Obliviadores trabalhavam não apenas no limite da ética, mas também nesse linha invisível da moral. Acessavam e modificavam, apagavam e brincavam com as memórias alheias para manter um segredo que estava sempre ameaçado de ser revelado.

O que diferenciava aquela mulher, no alto de seus setenta anos denunciados pelas marcas de expressão que o tempo lhe impusera na face, de um homem que ao descobrir a magia de seu filho, o abandonara em uma instituição de caridade. Ambos tiveram contato com a natureza bruxa em seu ápice, ela diante de um duelo que ainda transcorria no outro lado de seu arbusto que com tanto cuidado aparava e o pai, aquela criatura horrível que Dante acompanhara em sua última saída a campo, que afirmara para a mãe preocupada que o filho tinha falecido em um acidente de carro que ambos haviam se envolvido, apenas por ter testemunhado o garoto de sete anos levitar uma dúzia de copos por um instante. Ela teria sua memória apagada, um feitiço se tornaria um estouro de fogos de artifício fora de época. Ele? Tivera a visita de oficiais da COMASUL, que explicaram-no toda a situação e foram expulsos por uma arma empunhada.

Não podiam interferir e poupar tanto pai quanto filho daquela descoberta. Se, porventura, um dia o filho buscasse sua origem, tinha que encontrá-la intacta. Entregar uma criança para o Estado, respeitando seus direitos de ser bem cuidada, não era um crime passível de punição, ainda que o Castro fosse um grande apoiador de surras em adultos imbecis. Nem Dante, muito menos os aurores que o acompanhavam naquelas duas ocorrências, poderiam fazer qualquer coisa. A senhora, no entanto, ainda que absolutamente encantada com o mundo que se revelava diante dela, teria as cortinas brutalmente fechadas.

Fez surgir da ponta da varinha um buquê, que para o total deleite da senhora, lhe foi entregue em mãos. O agrado fora planejado, cheio de flores coloridas em abundância. Beiravam um pedido de desculpas inconsciente do cubano. — Vou te mostrar um outro truque. — Prometeu, estendendo a varinha em direção a mente da trouxa. Ela teve um retraimento mínimo, mas admirada como estava, não ofereceu resistência alguma. Liliana, em suas costas, fez um sinal afirmativo ao desaparecer em um vórtice junto com os dois transgressores que expuseram o segredo bruxo aos não-mágicos.

Ao mesmo tempo que pessoas abertas à experiência eram a parte mais fácil de seu trabalho de manipulação de memórias, também provavam ser as mesmas pessoas as que mereciam manter seu conhecimento intacto. Ignorantes de mente fechada, o Castro tinha prazer em esconder o universo bruxo de seus pensamentos mesquinhos, mas a curiosidade infantil e sincera daquela senhora… — Obliviate. — Afirmou e sentiu a manipulação moldar a mente da senhora. A origem do buquê que lhe oferecera desapareceu e, como já planejado, o duelo se transformou nos dois irmãos explodindo alguns fogos de artíficio. Mentiras necessárias? Era assim que se convencia, a cada dia de trabalho.

O sol esquentava a cidade, perigosamente os aproximando dos trinta e cinco graus. Ao contrário daqueles que moravam mais acima naquele país de dimensões continentais, os sulistas encontravam uma vida particularmente mais difícil sempre que no auge do verão a temperatura ultrapassava os confortáveis vinte e cinco graus. Naquele primeiro de fevereiro, então, com o sol ardendo no céu azul sem nuvens, não haviam muitos bruxos ou trouxas fora de casa. Entre aqueles que podiam se dar ao luxo de escolher, é claro.

Também foi naquela tarde magnífica para esticar as pernas sobre uma toalha pousada às margens do Guaíba rodeado pelo cheiro de bergamotas recém descascadas que o quartel general dos aurores. em conjunto com a central de obliviação, destacou um par de seus funcionários para uma infração de exposição de magia no Complexo Osvaldo Aranha. Um residencial trouxa localizado em área não-magica (naturalmente), mas que mantinha entre os seus uma boa parcela de residentes bruxos. Os funcionários, ambos complementares em suas funções, também tinham muitos traços em comum: Os cachos castanhos, a pele morena, os caninos com as pontas mais afiadinhas que lhe davam um sorriso quase lupino e, é claro, os sobrenomes idênticos: Liliana e Dante Castro Sotto del Valle. O casal de irmãos cubanos que escolhera o Brasil como sua moradia do coração.

Uma chave de portal os levou diretamente para a garagem de um membro da Confederação Mágica Sul Americana que permitia que seu espaço fosse usado como um ponto de comunicação entre os mundos. Liliana, ainda que nunca tivesse conhecido o proprietário da casa oficialmente, sentia-se íntima da família ao acompanhar o movimento de caixas no espaço inutilizado. Sempre havia um brinquedo espalhado, uma fotografia nova para se deparar, mas como a família recebia uma notificação sempre que uma chave de portal era criada, a cubana jamais olhara nos olhos físicos daqueles que acompanhara ao longo dos três anos de chamados para aquela região.

— Um bebê vem chegando. — Indicou para o irmão, esticando o queixo na direção de uma caixa de papelão com a ilustração de um berço nas laterais. Ainda estava lacrada e, por apenas um mísero instante, Liliana sentiu-se compelida a esticar a varinha e deixar um parabéns para a expansão daquela família. Porém, nada fez. Saiu pela porta lateral, com seu uniforme auror transfigurado na farda bege dos brigadianos locais e acompanhada do mais velho que, justamente devido ao seu serviço, usava roupas trouxas comuns.

— É um sobrado pequeno, 357. — Relembrou, não tardando a identificar a casa. Felizmente da rua não havia a menor indicação de magia visível a olhos não-mágicos. Lily bateu na porta cinza da residência, dando uma boa olhada nos arredores, mas sua busca foi interrompida quando uma mulher abriu uma fresta da porta com olhares preocupados. — Oficial Castro e Castro, senhora. Tivemos um chamado. — Apresentou-se, enquanto o irmão exibia a identificação oferecida pela COMASUL.

O reconhecimento brilhou nas íris da senhora, que prontamente escancarou a porta para ambos. — Por favor, estão lá atrás! — Enquanto a dupla era guiada para a área externa, a mulher tentou explicar em um tagarelo sem-fim o que estava acontecendo: Os dois filhos, gêmeos, haviam desistido de ir para o último ano de Castelo Bruxo devido a uma namorada residente em Tramandaí. Iriam se dedicar e entrar na Universidade trouxa, Tássio ia cursar Oceanografia e Bruno, Biologia. Eis que, naquela tarde, decididos a oficializar o relacionamento perante a família, Tássio tinha apresentado a namorada para a mãe em uma vídeo-chamada. Qual não foi a surpresa para Bruno que, no caminho de ir para seu quarto, se deparou com a namorada sendo apresentada pra mãe no celular do irmão. Furioso com a traição, jogou um encanto no irmão, que revidou. A mãe, trouxa, não se atreveu a interferir e agora os dois funcionários da confederação transitavam entre uma casa que parecia devastada por um furacão.

Liliana saiu para o jardim externo e, sob o calor de trinta e cinco graus, uma nevasca caía sobre um dos gêmeos. Em meio a sol e neve, o rapaz certamente sairia com uma bela gripe dali. — Eu lido com isso. — Garantiu para o irmão enquanto ele começava a procurar testemunhas daquela irrealidade. — Expelliarmus! — Comandou, direcionando o encanto para o irmão que alvejava o primeiro com a tempestade. O encanto se chocou com o feitiço que o primeiro usara para se defender e, antes que pudesse entender, Liliana sentiu a própria varinha sair voando de sua mão direita.

A fúria subiu pela sua garganta, desencadeada pela vergonha. Eram dois adolescentes, pelo amor da Caipora! Esticou a mão ainda no mais alto, de rosto redondo e cabelos pretos espetados, que viria a descobrir ser Bruno, que se saía melhor naquela briga infantil e declarou  — Aguamenti! — Visando assustá-lo com um abundante jato de água canalizado pela magia de sua mão direita. Na sequência, esticou a mesma mão na direção do revoltado Tássio, cujos traços finos e o queixo bem marcado faria sua versão adolescente suspirar e encantou: — Petrificus Totalus.

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No instante que o jato de água saia de sua mão, Liliana lembrou-se da mulher trouxa ao seu lado. Podia estar acostumada à magia dos filhos saindo de gravetos cuidadosamente esculpidos, mas não estava familiarizada com a magia em si e, muito menos, uma avaradora. O grito de assombro desta ao ver a água jorrar das mãos da bruxa, teve o efeito de sobressaltar a auror que voltou o olhar na direção da senhora ocasionando num banho na senhora Penteado da cabeça aos pés. Liliana reprimiu uma risada, sabendo que o que fizera se dirigido a uma bruxa que soubesse o que estava acontecendo era certeza de uma reclamação no quartel general. Manteve a seriedade e petrificou o segundo filho, voltando a atenção do primeiro para igualar o feitiço que enclausurara o segundo. — Petrificus Totalus. — Comandou novamente, esticando a mão na direção de Bruno que ainda mantinha a nevasca, mas cuja atenção já estava uma boa parcela dedicada à auror.

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Com os dois irmãos imobilizados, Liliana retornou a atenção para a matriarca com um olhar mais suave. — Perdão, senhora. — Esboçou, vendo as roupas ensopadas formarem uma pequena lagoa aos pés da mulher. Do alto de seus cabelos, a camiseta, o jeans e os tênis estavam todos escurecidos de água. A cubana teve a decência de corar em culpa, antes de dar cerca de cinco passos até onde a sua varinha havia caído. Recolheu-a do chão e fez um jato de vento secar prontamente a mulher. — Resolvido. Infelizmente o que seus filhos praticaram aqui foi uma grave violação ao sigilo mágico, acentuado ainda pelo fato que tivemos testemunhas. — Explicou, juntando-se aos dois homens imobilizados, ainda sendo acompanhada (ainda que agora de uma distância mais segura) da progenitora. Pessoalmente ela não vira ninguém, mas para Dante não ter se envolvido naquela rápida bagunça, de certo mantivera-se ocupado com alguém. — Terei que levá-los para uma visita à delegacia de Monte Nevado, onde a situação será analisada para definir se acontecerá uma detenção ou apenas aplicação de multa. Sendo responsável legal, eu imagino, por ambos, a senhora pode nos acompanhar.

— Tássio, Bruno. — Chamou, sem dirigir-lhe de fato alguma atenção. Ainda não sabia quem era quem, felizmente o fato de não serem idênticos facilitava o processo. — Irei desencantá-los, lembro que agora vocês dois estão detidos e qualquer fuga será interpretada como evasão. Estamos entendidos? — O efeito do feitiço se desfez com um gesto de varinha da cubana e logo os dois adolescentes, furiosos, mas envergonhados e obedientes, se colocaram ao lado da mãe. Liliana fez um gesto para o próprio irmão, que agora identificara apontando a varinha para uma senhora e chamou-o. Ali estava resolvido, era hora da burocracia entrar em ação.