Uma nova leva de livros havia chegado à biblioteca de Castelobruxo e, com a ajuda dos veteranos — pequenos animais nativos da Floresta Amazônica — Paula, a bibliotecária do colégio, arrumava-os nas inúmeras prateleiras. Um mico-leão-dourado — Nicolas, ou Nico, para encurtar — colocava um livro de transfiguração na prateleira mais acima, escalando a estante com destreza e colocando-o em seu lugar correto. Uirá estava parada, como uma estátua, no ombro de Paula, vigiando com atenção o redor da mulher, pronta para protege-la.

Em suas mãos, levava um caderno de capa dourada, com linhas negras do início ao fim, sendo preenchidas mágica e automaticamente com o nome do livro e a prateleira no qual estava sendo guardado, com uma caligrafia fina e arredondada, feita a uma tinta preta azulada. O caderno a ouvia enquanto dava as ordens para os pequenos animais que, espertos, acatavam aos pedidos gentis da bibliotecária.

Os alunos passavam por ela e, ao menos os mais velhos, não pareciam estranhar a movimentação dos veteranos que a ajudavam, ou o falcão peregrino empoleirado em seu ombro, olhando-os com um temível olhar dourado — quase como se os ameaçasse a chegar mais perto — ou bicando gentilmente o topo da cabeça da jovem bibliotecária, pedindo carinho, ou, quem sabe, um petisco — que ela passou a guardar no bolso da calça jeans, forrado com uma sacolinha plástica.

Os mais velhos sabiam que Uirá — a veterana mais velha de Castelobruxo — nunca iria machucar nenhum dos bibliotecários no comando, mas os mais novos, quando viam a cena, assustavam-se, ainda mais quando eles precisavam da ajuda de Paula, e a protetora da bibliotecária os encarava, com seus olhos dourados e inteligentes. E quase ninguém percebia o discreto sorriso que aparecia em seus lábios, um sorriso divertido que aparecia no canto de seus lábios, toda vez que se assustavam com a ave de rapina.

Com um carrinho que andava sozinho seguindo-a, Nico ajudando-a e Uirá acompanhando-a — vez ou outra chamando um veterano ou outro para ajudar os alunos que procuravam por um livro, para então voltar a empoleirar-se em seu ombro — Paula continuou com seu trabalho, anotando os livros e guardando-os, seguindo pelas infinitas estantes, seguindo o esperto mico-leão-dourado, que lhe guiava pelo caminho.

Paula sentiu o impacto antes de perceber o que tinha acontecido.

Estava com uma pequena pilha de livros na mão, colocando um livro numa prateleira a sua altura, enquanto Nico colocava um livro em uma prateleira mais acima, escalando com destreza — mesmo com uma mão ocupada — as prateleiras apinhadas de livros. Então sentiu o esbarrão, e, surpresa, deixou cair a pequena pilha que tinha se formado em seus braços no chão da biblioteca. Ouviu um guincho alto e Nico estava ao seu lado, ajudando a ela e ao homem de traços asiáticos a pegar os livros que estavam no chão.

O mico-leão-dourado a olhou com os olhos inteligentes, uma pergunta tácita: “Você precisa de ajuda?” e Paula simplesmente meneou a cabeça, sorrindo gentil e passando a mão suavemente na cabeça do pequeno animal. Só então dirigiu-se ao homem que havia lhe esbarrado e, antes que pudesse lhe responder — sorrindo com a forma inusitada, mas cultural, do homem se desculpar, fazendo uma reverência e abaixando a cabeça — ouviu um guincho alto e irritado, e Paula se virou, vendo Uirá empoleirada em cima de uma baixa pilha de livros que ainda estava no carrinho.

A veterana encarava o homem com desconfiança, seus olhos dourados encarando-o como se dissesse “Saia de perto dela” e a jovem teve que ficar entre ambos para que ela não atacasse o homem.

— Uirá, foi só um acidente. Acalme-se. — disse Paula, com uma severidade pouco característica em sua voz.

O falcão peregrino a olhou e, então, olhou novamente para o novo personagem, e novamente para a jovem bibliotecária. Fez um movimento com o bico, indicando seu bolso frontal direito, o que tinha os petiscos para a veterana, quase que uma exigência para manter Kachen ileso. Paula rolou os olhos e pescou um pedaço de carne de seu bolso, esticando-o para a ave de rapina, que pegou de sua mão com delicadeza, quase sem encostar o bico em sua palma.

— Pronto, garota. — disse, saindo da frente da veterana e alisando as penas da cabeça da ave, olhando para o homem, sem exatamente conseguir manter um contato visual com ele. — Desculpe por isso, Uirá é um pouco superprotetora comigo. — a capixaba mordeu o canto do lábio e olhou novamente para Kachen, sentindo seu rosto corar. — Eu sou Paula. — Uirá empurrou sua mão com o bico, olhando dela para o zelador novamente e a jovem suspirou — Essa é Uirá, minha veterana protetora. — Nico guinchou e pulou em seu colo, agarrando-se em seu pescoço e Paula revirou os olhos, rindo baixo. — E esse é Nico, meu ajudante do dia.

Paula alisou o pelo das costas do pequeno animal agarrado em seu pescoço com carinho, fazendo-o apoiar a cabeça em seu ombro, e olhou para cima. Ele acariciou suas costas, passando sua pequena mão levemente pelo tecido de sua blusa de mangas curtas. Nico estava tentando acalma-la, e Paula o agradeceu silenciosamente por isso.

— Eu sou a nova bibliotecária daqui. É um prazer conhece-lo, Kachen. — disse, estendendo a mão que não segurava o mico.

O zelador asiático tinha um sorriso afável e carismático, aparentemente. Paula sorriu amigavelmente, enquanto Uirá soltava mais um guincho, nem um pouco amigável. As orelhas da capixaba ficaram vermelhas e continuou a acariciar as penas da cabeça do falcão peregrino.

— Ele só está querendo ajudar. — murmurou para a ave, enquanto Nico ainda passava a mãozinha em suas costas. A bibliotecária suspirou, olhando para o jovem chinês. — Desculpa, ela não... Ela não costuma ser assim... Nós tivemos um pequeno problema com outras pessoas daqui do castelo então... Hum... Desculpe.

Nico pulou de seu pescoço para o carrinho com os livros. Seus olhos dourados e brilhantes ainda perscrutavam Kachen, assegurando-se que ele não oferecia nenhum perigo para a bibliotecária, mas não oferecia tanta resistência quanto Uirá, que continuava olhando-o ameaçadoramente. Paula pegou um livro e leu seu título, entregando-o ao mico-leão-dourado.

— Podemos conversar, se quiser, mas não sei se seria uma boa ideia que me ajudasse. — disse a Assis, olhando para a pilha de livros. Com os veteranos, sabendo que eles estavam ali, caso algo lhe acontecesse, sentia-se mais segura em conversar com o homem mais velho. — Você pode se perder entre as prateleiras e acabar virando um veterano... — disse Paula, olhando para ele, com uma risadinha saída pelo nariz. — Não é uma vida ruim, sabe? Mas você quer ser um cantor, então… Imagino que não queira passar os próximos cem ou duzentos anos preso em um labirinto de prateleiras, não é?

A bibliotecária sorriu e olhou para o carrinho, pegando o próximo livro, lendo o título e entregando-o a Nico, que escalou as prateleiras e deixou o livro numa estante mais alta, então voltou, com as mãos vazias. Uirá pousou sobre o braço do carrinho, ainda observando o homem com olhos afiados e dourados. Ela guinchou novamente, indicando o bolso com o bico, e a jovem pegou um pedaço de carne, dando-a ao falcão. Então uma ideia surgiu em sua mente, e um sorriso se formou.

— Uirá, pode chamar a Joana para nos ajudar? — perguntou Paula, torcendo para que o falcão não tivesse suas próprias ideias. — Por favor? Te dou mais petiscos quando voltar.

Uirá lançou-lhe um olhar desconfiado, e, então, voltou-se para Kachen, quase ameaçadoramente, quase como se o avisasse para não se aproximar demais da capixaba. Então alçou voo e voou mais adentro do labirinto de prateleiras da biblioteca.

— Ela deve voltar em alguns momentos. — disse a Kachen e deu de ombros, pegando mais um livro e entregando-o a Nico, que a olhava com um tom de reprovação. — Ele não é o Rodrigo, Nico. — sussurrou, então voltou-se para o homem novamente — Você me perguntou o que eu gosto de fazer, certo? Então... — sorriu, sonhadora, e olhou para os livros e para o mico-leão-dourado, alisando seu pelo atrás da orelha. — É isso. — sorriu de lado, sentindo o veterano aconchegar-se em sua palma. — Eu gosto deles, gosto de estar aqui. Gosto dos livros, da... — soltou um riso curto e divertido — Da bagunça.

Paula respirou fundo e deu de ombros, enquanto via Uirá voltar voando, com um macaco-aranha a seguindo, seus olhos espertos e brilhantes, voltando-se para a jovem e Kachen. O falcão deveria ter falado à Joana suas desconfianças e a jovem bibliotecária suspirou, olhando sua veterana protetora com certa desaprovação. Rolou os olhos quando a macaquinha escalou o carrinho, colocando-se em seu posto, junto com Nico, e Uirá empoleirou-se no ombro da capixaba, cavando seus cabelos com o bico.

Ainda Rolando os olhos, pegou mais um petisco em seu bolso e o deu a Uirá, só então virando-se para o zelador.

— Certo. — disse a capixaba. — Essa é Joana, ela vai te ajudar. Você só tem que ler o título do livro em voz alta, e depois entregar a ela. — Paula sorriu de lado, e pegou um livro, lendo o título a Joana, que subiu as prateleiras com bastante maestria, deixando o volume em seu devido lugar. — Ela vai saber o que fazer. Os veteranos são muito espertos.

Não se preocupe, como zelador eu tenho que saber cada local dessa escola como a palma da minha mão. Paula ouviu a fala do zelador e Nico bufou, enquanto segurava outro livro para colocar em seu lugar na prateleira de livros. A jovem Assis meneou a cabeça.

Aquela era uma fala de alguém que não conhecia a biblioteca de Castelobruxo, e, considerando suas origens orientais, duvidava muito que o Kachen o fizesse. Continou seu trabalho, lendo em voz alta o título do livro — seu nome aparecendo no caderno aberto em sua mão — e entregando-o ao mico-leão-dourado, que o colocava no lugar.

Uirá ainda olhava com olhos estreitos e desconfiados para o oriental e, a cada gentil bicada em sua cabeça, Paula rolava os olhos ao voltar-se para a ave, que indicava o homem com o bico.

— Ele só está ajudando, Uirá. Deixa disso. — resmungou Paula, parando por alguns instantes para observar Kachen, que fazia o mesmo que ela estava fazendo: pegava o livro, lia a capa e entregava à Joana, a macaquinha-aranha que ainda o olhava curiosamente. A bibliotecária meneou a cabeça. Ótimo, agora eles nunca vão me deixar em paz. Pensou, enquanto alisava as penas da cabeça da ave de rapina, agora empoleirada na alça do carrinho de livros.

— Kachen? — a capixaba interrompeu o silêncio confortável em que haviam entrado após alguns instantes, mordendo o lábio e sentindo suas bochechas corarem enquanto ela se virava para o músico. — Você não é daqui, né? — perguntou, mordendo o lábio brevemente e encarando o zelador, então sentindo seu rosto corar ainda mais com a pergunta que havia feito. Era quase como se não tivesse percebido que o sotaque do homem era diferente da que estava acostumada. — Quero dizer, você tem um sotaque diferente… — mordeu o lábio mais forte, vendo os dois macaquinhos a encarando. Quase podia-os ver contendo o riso. Malditos. — Quero dizer…

Joana e Nico começaram a rir — a pesar de suas risadas soarem como guinchos e barulhos pouco inteligíveis — e Paula os encarou, sentindo o rosto queimar, com a vergonha, e seus olhos se encherem de lágrimas. Foi somente nesse momento, quando Uirá guinchou, encarando-os com olhos estreitos e autoritários, que os dois primatas pararam de rir, vendo o estado da jovem, abaixando a cabeça e estendendo a mão em sinal de submissão à Assis, como se pedissem desculpas.

A bibliotecária os olhou, enxugando discretamente as duas lágrimas que haviam escorrido de seus olhos, e aceitou seus pedidos de desculpa, passando a mão suavemente sobre as palmas dos primatas. Sorriu, triste, e passou a mão na cabeça de ambos.

— Está tudo bem. — murmurou, com a voz levemente embargada, para cada um, dando um beijo suave no pelo de Nico e passando a mão nos pelos da bochecha de Joana. — Voltem ao trabalho. — falou, um pouco mais alto, lendo a capa de dois livros e entregando-os aos primatas, que subiram com destreza as prateleiras. Então se virou para Uirá, tocando o bico da ave com a testa. — Obrigada. — sussurrou, fechando os olhos e alisando as penas da cabeça do falcão.

Piscou algumas vezes e se virou para Kachen.

— Desculpe-me por isso. — disse, ainda com as bochechas rosadas. — De vez em quando eles exageram nas brincadeiras.

Chinês, hum? Interessante. Pensou Paula, enquanto pegava mais um livro e o entregava a Nico, sorrindo para o mesmo.

Seu rosto continuava levemente vermelho por causa das brincadeiras que os veteranos haviam feito, Uirá continuava a olhar para Kachen com os olhos atentos, quase ameaçadores, enquanto o asiático olhava o relógio. Estava atrasado para seu próprio trabalho, e a Assis não pôde esconder o pequeno sorriso que se abriu em seus lábios, sentindo o rosto corar.

— Tudo bem. Bom trabalho, Kachen. — disse, sorrindo ternamente para o homem, que se virou e acabou indo embora.

Joana continuou ajudando o trabalho da bibliotecária, colocando os livros em seus devidos lugares, enquanto Paula se alternava, entregando os livros até que a pilha de livros acabou. A Assis liberou os veteranos primatas, a pesar de Nico ter se pendurado em suas costas, como uma mochilinha de mico-leão-dourado, e levou o carrinho para seu lugar — atrás do balcão. Paula tirou o caderno do carrinho, colocando-o sob o tampo de madeira, junto com a caneta em que anotara os nomes dos livros que acabara de guardar.

Ela respirou fundo, puxando o bracinho do miquinho, apoiando-o enquanto ele se pendurava em seu braço, colocando-o sentado sobre o balcão, junto com Uirá, empoleirada na madeira. Passou a mão suavemente no pelo dourado de sua cabeça, ouvindo-o ronronar baixinho, e pescou umas frutinhas no bolso do outro lado — o que não tinha petiscos de carne para a ave de rapina que a protegia — e deu ao primata, que pegou de sua mão e comeu.

A Assis respirou fundo e olhou em volta, vendo alguns livros espalhados em uma das mesas onde os outros alunos estudavam, misturando-se com alguns veteranos que caminhavam por aqui e ali.

— Nico, você pode guardar aqueles livros pra mim, por favor? — perguntou, sorrindo ternamente para o pequeno primata de pelos dourados. Ele soltou um guincho baixo e seguiu, pulando do balcão para o chão, indo, habilmente, até a mesa em que os livros estavam, sumindo dentro do labirinto de estantes cheias de livros.

Paula sorriu para Uirá, acariciando as penas de sua cabeça, e sentou-se em sua cadeira, pegando o livro que estava lendo, abrindo na página marcada, começando a ler na linha em que tinha parado.