Imagine uma casa confortável, cujos móveis foram escolhidos a dedo, onde os papéis de parede, se pudessem falar, contariam as vivências mais divertidas e que trazem as lembranças que aquecem o coração. Não de forma literal, é claro. Stefânia sempre fora uma mulher muito ocupada, do tipo que pouco para em casa, e com isso Bárbara se identificava. Sendo elas mulheres modernas e independentes, precisavam trabalhar. Stef tinha comprado a casa para ela, o marido e sua filha que tinha nove anos na época. Ela lembra que toda vez que chegava em casa, o cachorro corria para lamber suas mãos e o cheiro de café passado invadia suas narinas. O arrependimento por não ter desfrutado mais aquele ambiente com os familiares não a impediu de ver ali a sua proteção. Depois de um acidente onde somente ela sobreviveu, o cachorro fora doado porque ela não poderia levá-lo para passear. Aliás, ela não poderia ir para lugar nenhum. O conforto do lar virou sua redoma, sua proteção contra todos os perigos da vida do lado de fora. E ela tinha embasamento para isso. A quantos riscos somos expostos diariamente quando saímos de nossas casas? Atropelamento, algum veículo descontrolado, um maluco que te ataca do nada, um vírus perigoso, um prédio que desmorona... são tantos os exemplos de coisas que podem acontecer e colocar a vida em risco, que Barbie entendia o anseio da paciente. Ela havia sofrido um grande trauma quando perdera o esposo e a filha, e agora só havia um lugar em todo o mundo que lhe dava paz.

É notório que muitas pessoas são apaixonadas por praias, correndo para elas em seus tempos livres. Outras preferem o campo, talvez florestas. Há os que vão direto para as cidades maiores para respirar a poluição que parece paradisíaca para quem vive em cidade pequena, assim como o oposto também ocorre. Para Stefânia isso tudo era um grande pesadelo. Ela sofre de um transtorno psiquiátrico chamado de agorafobia. Em suma, a mínima ideia de colocar um pé para fora de sua casa a deixa tão ansiosa que os ataques de pânico a atingem em seguida, tão fortes que fazem a ideia de sair novamente parecer pior todas as vezes em que ela tenta. Quando pegou o caso, alguns meses antes – prestes a completar um ano, Fialho ainda era uma estudante, e estava em período de residência, de forma que ela entrou no caso como uma psiquiatra assistente. O diagnóstico já estava feito, a terapia cognitivo-comportamental já estava em andamento, ela já tinha uma equipe de psicólogos e até de neurologistas, que logo foram descartados. Ela não conseguia sair de casa nem mesmo com a ajuda de alguém. É interessante, pois geralmente os pacientes com esse transtorno não conseguem sair sozinhos por medo de ter uma crise de pânico ou de não conseguirem retornar para suas casas, mas para aquela mulher, jovem, bonita, vítima de uma circunstância cotidiana, para ela nem o melhor dos medibruxos ou o mais forte segurança era capaz de tranquilizar a ideia de sair de sua redoma. Era assim que ela chamava. Ao se formar, Bárbara ficou com o caso, e embora precisasse visitar Stef apenas uma vez por mês – o que fora uma luta, visto que a bruxa só aceitava receber delivery, as consultas semanais eram por celular.

Naquela primeira manhã no trabalho, antes da primeira ronda pela ala psiquiátrica, a medibruxa foi diretamente para seu consultório. Era um espaço bastante confortável, aliás. Ela sentou-se sobre a nova poltrona e abriu a bolsa, retirando o celular, uma agenda e uma caneta qualquer. Seu primeiro afazer naquela manhã seria ligar para a consulta agendada com Stef. Discou o número da mulher, que aceitou a chamada de vídeo e parecia tão desanimada em vê-la que arrancou um sorriso da profissional. — Bom dia, Stefânia. É ótimo te ver também! — A conversa começava sempre igual: a paciente estava impaciente, sem vontade de conversar ou de ver outros rostos que não fossem os da família morta que estavam espalhados em fotografias e quadros pela casa. Ela contou sobre a terapia com os psicólogos e como ela havia tentado ir até o pátio de casa na semana passada. Outra crise de pânico, e agora ela estava teimosa sobre tentar mais uma vez. — Não, nada de desistir. Eu bato aí na sua casa, você sabe. — Disse a medibruxa, fazendo uma careta desgostosa ao dizer aquilo. — Como estão as novas medicações? Algum efeito colateral? — O papel de Bárbara consistia em ajudar com as crises de pânico, de forma que era ela a responsável pelo ISRS. A classe dos ISRSs é composta de medicamentos tão eficazes quanto os antidepressivos tricíclicos, mas com uma menor quantidade de efeitos adversos e de tolerância. Além desses, também era receitado benzodiazepínico para controlar a ansiedade antecipatória. As doses de Stefânia já eram bem altas, mas ela era teimosa e tanto a psiquiatra quanto o psicólogo acreditavam que ela não tomava as poções corretamente. Ao ser questionada sobre os efeitos colaterais, ela relatou o que já se esperava: muito sono e dificuldade de lembrar de algumas coisas. Seu medo se tornou evidente ao dizer esta última parte. Temia perder as lembranças da filha, em especial. Barbie continuou ouvindo o relato, fazendo anotações em sua agenda que em breve seriam passados para o prontuário da mulher. — Lembra que te contei do emprego novo? Então, primeiro dia. Vou conversar com o poçologista de plantão para vermos o que vamos fazer a respeito desses efeitos colaterais, ok? Assim que isso for resolvido, vou ligar pra você e avisar sobre a entrega. — Ela estava de acordo, o que foi muito bom. A conversa logo fora encerrada, e entre tantas anotações, a medibruxa ainda precisava fazer sua ronda da manhã e depois ir de encontro ao plantonista das poções para conversar sobre o caso.