A caneta azul rabiscava alguns testes daquele ano e apesar da forte dor de cabeça, Bianca sentia-se satisfeita em, finalmente, estar livre. Não que suas obrigações como professora acabassem por ali, ainda mais agora que fazia parte da bancada avaliadora de NOMs e NIEMs de 2020 e, como uma mãe ao ouvir as primeiras palavras de seu bebê, sorria, boba, ao ver que a maioria de seus alunos conseguiram absorver o que ela tentou passar a eles no decorrer do ano. Cada um com suas peculiaridades, mas todos excelentes.

Emília, por exemplo, talvez fosse sua aluna mais inteligente. Sempre encontrando soluções nada convencionais para seus problemas, como quando conseguiu se livrar de um ataque de chupa-cabras com apenas um Accio em sua vassoura e garantiu sua aprovação na disciplina; ou Vicente, ele mesmo, o bobão que apesar de não ser muito bom no conjuro de feitiços, não para de tentar e acabou surpreendendo a Torres — e talvez a todos os docentes quando souberam — com o patrono corpóreo de um belo carcará quando foi necessário; ou até mesmo Alice, presidente do CA, excelente em tudo o que faz, extremamente responsável aos olhos dos outros e uma grande mulher que coloca os amigos antes de qualquer coisa — incluindo responsabilidades — aos olhos de Bianca.

Sentiria falta deles, quando saíssem da escola, e considerando o estado atual da sociedade bruxa, já sentia de alguns poucos que já não se encontravam mais por ali. Luca é um perfeito exemplo. A docente nunca gostou do ar de superioridade que o Coelho exalava, mas o fato de não trombar com ele nos corredores do castelo por tanto tempo lhe causava um aperto no coração. Luna, sempre a perdida, que voltou para a aldeia das mães d'Ouro assim que o decreto n°596 foi publicado. Malvina, deslumbrada com tudo, fez o mesmo que sua amiga. Em suma, todos os alunos não-humanos decidiram sair da escola até segunda ordem, e alguns pais tiraram seus filhos humanos dali também, julgando estarem mais protegidos em casa. Uma pena. Tantos rostos e tantas saudades, Bianca não entendia o motivo de estar tão emotiva.

Pancada atrás de pancada, as têmporas da Torres pareciam ser forçadas através de seu crânio e ela soube seu corpo queria lhe dizer algo. Basta estar sensibilizada para que suas visões mais certeiras venham de forma espontânea e, quando chegam, seu corpo é avisado com um grito de socorro. Bianca, então, tendo finalizado menos da metade de suas correções, fechou os olhos e encheu os pulmões três vezes, tentando esvaziar a mente para fazer a visão fluir.

Tudo o que pode ver foi uma nuvem. Uma grande e escura nuvem, que trazia a sensação de morte. Era como se estivesse voando nas costas de um chupa-cabra, não sentia medo ou dor, alegria ou satisfação, apenas um grande vazio no peito, como se mais nada importasse. Estava morta por dentro.

INFO:

Qual o significado de tudo aquilo? Mas que droga de visão era aquela? Segundo a oniromancia, as nuvens escuras dizem que tempos difíceis estão por vir. Havia algo errado ali. Primeiro que aquilo não era um sonho, e sim, uma visão; deve-se desconsiderar a interpretação dos sonhos quando o assunto é clarividência? Não! Claro que não, mas Bianca se recusava a acreditar nisso. Devia ter algo que estava deixando passar despercebido e, com tanta prática, já conseguia controlar suas visões para tirar o máximo de informações, sempre que entrava em uma.

O corpo da docente estava estático, rígido, sentado, e a expressão em seu rosto mostrava sofrimento, ainda que não fosse exatamente assim que a Torres se sentia dentro da visão. Concentrou-se um pouco mais para moldar o que via e a grande nuvem escura mudou de cor, estremeceu e Bianca caiu. Durante a queda, ouvia risadas distintas e uma delas — conseguiu perceber — era a de seu namorado, Miguel. Feliz, satisfeito, completo. Ele parecia ter tudo o que lhe vinha sendo negado pela namorada, principalmente paz.

"Egoísta, tapada, idiota, burra." Bianca sentia raiva de si mesma. Não era um sentimento positivo, mas pelo menos era um sentimento. Muito melhor do que a apatia que lhe assombrou no primeiro momento de sua visão. "Egoísta, tapada, idiota, burra." Ela tentou interromper a visão piscando o mais forte que podia, mas não deu muito certo. Quando sentiu a grama sob o tecido abaixo de suas costas, abriu os olhos e respirou fundo, assustada, como quem acorda de um pesadelo. — Algo errado? — A voz de Miguel lhe arrancou de seu torpor, e com o toque em seus cabelos, o afago trivial, ela percebeu que estava deitada em seu colo. Demorou alguns segundos até que Bianca entendesse o que estava acontecendo. Sua visão passou a ser em primeira pessoa e ela não tinha controle sob suas ações, um claro sinal de que aquele era um destino selado. Moveu a cabeça de um lado para o outro, em resposta a pergunta do marido e permaneceu ali, observando cada detalhe de seu rosto enquanto o típico sorriso Arganaz tomava lugar no rosto da Torres. Dez anos depois e ela ainda estava apaixonada.

— Você tem que nascer logo! — Uma voz infantil se foi ouvida e uma garotinha de cabelos loiros, aproximadamente oito anos, sentou-se ao lado de Bianca e encostou a testa suada sobre sua barriga de oito meses. A mãe sorriu, pensando em como ficou ansiosa pelo nascimento de seu irmão mais novo, quando criança. — Falta pouco, amor. — Ela respondeu, levando ambas as mãos à barriga, e trocando olhares com a filha. Agora, sentia-se completa, sem preocupações, feliz, como sempre deveria ser.

— Falta pouco. — Disse Bianca, de volta em sua sala em Castelobruxo, com as mãos acariciando a barriga reta. Simples assim, soube, estava esperando sua primeira filha. Precisava contar, precisava voltar a si e se desculpar com Miguel. Para ela, tudo havia se tornado mais fácil, sabendo que ele a perdoaria. Não havia mais espaços para dúvidas.

INFO: