Eu sempre soube que o futuro me reservava uma jornada complicada, mas que cada degrau que parecesse alto demais deveria ser visto como uma ajuda para que eu chegasse mais rapidamente ao topo. Mas ao topo de que? Eu ainda não sei dizer, embora eu possa afirmar que será ao ápice de um desejo meu, criado e idealizado por mim. Uma das coisas que aprendi com a fuga dos meus pais para o mundo trouxa depois de alguns errinhos na sociedade bruxa é que não dá pra viver de verdade quando a opinião dos outros pesa mais do que a nossa. No máximo a gente existe, e eu não estou aceitando menos do que excelência, seja nas notas, seja na vida. Quanto as aulas, aliás, eu estou indo muito bem. Não vou mentir que tudo está sendo tão fácil quanto eu esperava, pois ainda me perco pelos corredores e tenho que prestar muita atenção nas aulas para não perder detalhe algum. Todos dizem que é coisa de primeiranista essa euforia de querer aprender tudo e aproveitar cada segundo dentro dos terrenos dessa escola, e eu espero verdadeiramente que essa sensação se prolongue pelos próximos anos. Até a formatura está bom, e só a minha opinião importa. É que embora eu não goste de falar para minhas amiguinhas, a parte mais difícil não é estar aqui – os mapas que desenhei tem me ajudado bastante, e sim estar longe dos meus pais. Não sou uma garotinha boba que não consegue ficar longe deles, mas ainda sou uma criança que passou toda a vida cercada por amor parental e agora está muito longe de casa, sem a possibilidade de rever os familiares ou participar de suas vidas mais do que o celular e as cartas permitem. Que fique registrado que eu estou muito feliz em estar vivenciando tudo isso, e Castelobruxo só faz ficar mais fascinante com o passar dos dias, e as novidades acabam afastando aquele sentimentozinho que vez ou outra ganha massa e volume e puft! Estamos cheios de saudades novamente.

Foi por causa dessa saudade massuda e forte que resolvi me aventurar pelos terrenos ao redor da escola. Sim, eu já havia sido alertada que os botos conseguem ser bastante arteiros, mas era dia e eu estava agarradinha com minha varinha. Não que eu soubesse muitas formas de utilizá-la, afinal eu ainda estava no começo do primeiro dos sete anos que passaria aprendendo a aperfeiçoar minha magia. Parando de enrolar, a verdade nua e crua é que eu estava doida para conhecer o espelho d'água cristalina que todos os meus colegas falavam a respeito. Parecia algo lindo de se ver e um local perfeito para chorar baixinho afastada de olhares julgadores. Se bem que tudo bem me julgarem como uma garotinha imatura, pois eu tenho onze anos. Que me rotulassem como quisessem, aliás, pois eu preciso ser honesta comigo mesma. Ainda que eu pudesse ser quem eu sou e me expressar como sentir vontade, sempre preferi ter meus momentos sentimentais sozinha e não seria diferente agora. Foi por esses dois motivos que eu peguei meu mapinha cheio de rabiscos e me aventurei até o riacho. E uau, a água é linda mesmo! Só não é assim tão cristalina, pois aquilo ali meio que parece uma alun... — MENINA, CUIDADO COM AS IARAS! AI MEU DEUS! AI MEU PAI! ALGUMA CAIPORA AQUI POR FAVORRRR! — É óbvio que eu comecei a berrar igual uma maluca. Não sei o motivo que me fez balançar os braços, pois quem estava se afogando e precisava fazer tais movimentos era Ana, minha colega. Dizem os boatos que alguns dias atrás ela ficou careca, mas não dá pra saber. De qualquer forma, mesmo que ela não fosse se afogar no final, aquelas águas iam parar na propriedade privada das Iaras, e bom, não precisa de muito tempo em Castelobruxo pra saber que é território altamente perigoso. — AGUENTA AÍ, ANA, EU VOU PENSAR EM ALGUMA COISA. AI MEU DEUS, PODE GRITAR AQUI? — Parei imediatamente para olhar para os lados em busca de alguma aprovação. Os guaranás espiões demais não sabem falar? Eu não estava em uma vibe muito legal para ficar de detenção. Espera, quem é que vai me castigar por gritar quando a intenção é salvar a coleguinha? Aula de feitiços, livro, qualquer coisa, mas tudo que eu conseguia lembrar era de aguamenti. Ótima ideia, Amália, o que não falta aqui é água, garota! Como eu não conseguia pensar em nada útil e precisava ser rápida, prendi os cabelos em um rabo de cavalo e segurei firme a varinha, correndo até a beirada e me jogando na água. A correnteza não era igual colo de mãe, mas saber nadar teria de servir para alguma coisa. Cheguei perto o suficiente da minha colega e tentei parecer o mais calma possível, ignorando completamente o medo que eu estava de ser puxada pro fundo d'água por alguma criatura bizarra. — PARA, PARAAA! ACALMA O CORAÇÃO! Se ficar se rebatendo vai é afogar nós duas e nossos sonhos numa tirada só. Sossegue! — Me fiz ouvir, mesmo que para isso eu tenha tido que ser um pouco rude. Ana pareceu entender o recado e se acalmou o suficiente para se agarrar nas minhas costas. Minha única possibilidade ali era garantir a varinha firme em minha mão direita e iniciar uma tentativa de nadar até a margem.

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Que as coisas ficam mais leves embaixo d'água eu não discordo. Meu corpo mesmo parecia ficar alguns quilos menos pesado quando eu colidi naquela água praticamente transparente. E daí que eu poderia ver se fosse ter os pés puxados? Não queria era sofrer o ataque, ver seria o de menos. De qualquer forma, Ana estava menos desesperada, mas nem por isso mais leve. Nunca fui boa em matemática, mas se ambas temos peso parecido e ficamos igualmente mais leves quando submersas, então o peso dela em minhas costas se somava ao meu e, portanto, eu estaria com o peso integral novamente, certo? Não sei, já disse que cálculos não são meu forte. Céus, por que eu havia comido pudim depois de almoçar? — Ana, você não consegue ir nadando? Não que você esteja muito pesada, mas eu não sou nenhuma nadadora profissional e tal... — É claro que ela não sabia. Parecia cansada de ter se mantido consciente até ali. Dava para entender, pois eu estava ali não tinha cinco minutos e já estava exausta, querendo leite quente e biscoitos de mel como pré-soneca.  — Tem um feitiço, que se eu lançar na árvore certa, tira a gente daqui. Só que eu não treinei muito, além do mais, vou rachar a testa se der certo. — A loira fazia alguns barulhos anasalados para indicar que estava ouvindo, mas eu duvido que estivesse prestando atenção. Eu mesma não prestaria se não fosse a pessoa a dizê-las. — Falta pouco, amiga. Firma aí que eu vou tentar uma coisa. — Alertei, sofrendo um bom tanto para manter o braço direito fora da água o suficiente para que eu pudesse apontar a varinha para uma majestosa e bastante velha árvore. Seu tronco era grosso e em teoria suas raízes deveriam estar muito firmes no solo, considerando toda a idade que aparentava. Eu não tinha muito mais tempo, pois com o peso extra de Ana, a tarefa de manter qualquer membro fora d’água parecia cada vez mais impossível. — Carpe Retractum! — Lancei em direção tronco selecionado. Fechei os olhos para garantir que, em caso de funcionar, nenhuma folha me atingisse os olhos.

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Era o tipo de coisa que se alguém me contasse, dificilmente eu acreditaria. Posso jurar que quando conjurei aquele feitiço, pude sentir a magia tomando força dentro da minha varinha, e depois em direção aquela árvore. Eu também alego ter sentido, e isso pode muito bem ter sido obra da correnteza, que meu corpo foi levemente puxado na direção do meu objetivo. Talvez o peso de Ana tenha sido um problema, ou o fato de ter dificuldade de deixar o braço para fora da água, mas todos aqueles sinais me faziam pensar que eu havia acertado aquele feitiço. Talvez fosse falta de prática, afinal era só uma iniciante, não obstante poderia ter sido imperícia: eu sabia como conjurar, só não tinha a habilidade tão bem desenvolvida. Acrescento que é preciso levar em consideração o meio em que estamos. Dentro de sala de aula, nosso maior obstáculo é lidar com os olhares julgadores dos nossos colegas. Ninguém quer errar e parecer mais fraco. Aquele passeio que acabou virando um resgate aquático me fez pensar e entender que a vida real as coisas não costumam ser como planejamos, e que precisamos estar preparados para as adversidades mais loucas e inesperadas que podem surgir. Os professores estão lá para nos ensinar, mas a prática é dever nosso. Vendo pelo lado bom, eram os meus primeiros dias naquele castelo, e se eu continuasse nesse pique talvez até a hora de me formar eu teria experiência suficiente para salvar a minha vida e a de outros. O mundo está em paz agora, mas nunca se sabe quando isso vai mudar.

De volta a realidade onde duas crianças lutam contra a água para tentar voltar a terra firme, a corrente era um problema que estava sendo somado ao peso extra que carregava em minhas costas. Ana estava cansada, eu conseguia entender, e por mais generosa que eu seja, isso torna tudo um pouco mais difícil. Ah, tudo bem, torna MUITO mais difícil. Não fosse por ela eu nem estaria naquela água para início de conversa. Eu aprendi na escola trouxa que quando um feixe de luz troca de meio (tipo água pro ar) ocorre refração. Era essa a palavra? De qualquer forma, se os feitiços seguissem a linha do sol, eu só poderia fazer qualquer feitiço funcionar se utilizasse a varinha fora d’água. Não vou mentir que eu já estava exausta de tentar nadar, carregar a mim e a minha colega que parecia já ter desistido de ganhar aquela batalha. Hoje não, amiga, eu quero dormir até tarde amanhã mas acordar depois. — Carpe Retractum! — Lancei mirando novamente na árvore de tronco grosso o suficiente para que nós fossemos arremessadas até ele, e não o contrário.

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Se antes eu havia sentido qualquer sinal de movimento e de magia funcionando, agora eu poderia constatar tranquilamente que aquele não era o caso. É sério, minha varinha parecia ter desistido da tarefa de nos tirar dali. Aliás, molhada ela perde o efeito? Preciso sobreviver para descobrir. De qualquer forma, eu já estava ficando muito mais fraca do que eu achei que ficaria, e se eu quisesse sair dali com vida – e com Ana, preferencialmente, a coisa teria que dar certo dessa vez. — Eu queria taaaaanto descansar, amiga. — Parei de falar quando a água começou a entrar pela minha boca. Dei uma rápida olhada na afogada que parecia mais branca do que o normal. Não sabendo se aquilo era normal ou mau presságio, resolvi tentar novamente. Primeiro foquei no alvo perfeito para o único feitiço que eu conseguia lembrar além de aguamenti. Depois tratei de tirar Ana das minhas costas e a abraçar pela lateral do corpo. A nova posição dela não estava me ajudando muito, mas com o corpo pesando para o lado esquerdo, consegui puxar o braço direito para fora da água, dando uma chacoalhada na varinha – só para garantir – antes de lançar o feitiço mais uma vez. — Sou bonita demais pra morrer! CARPE RETRACTUM! — Lancei mais uma tentativa do feitiço. Que agora desse certo, por favorzinho.

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Pelas barbas de Merlim! Nem nas aulas de voo eu havia voado daquele jeito. Ok, não era exatamente voar, mas fomos puxadas diretamente na direção da árvore. Talvez pelo peso maior quando nossos corpos deixaram a água ou por pura sorte, não nos chocamos contra a árvore velha com tanta força assim. Na verdade fora muito tranquilo. Eu só queria me jogar naquele gramado e recuperar o fôlego, mas antes ainda devia observar se a garota estava significativamente bem. Quer dizer, ela obviamente estava exausta – e não era a única, mas e se tivesse engolido água demais? — Ana, você está bem? — Perguntei enquanto tentava achar uma posição confortável perto dela. Me assegurei de que estava bem, ao menos parecia e dizia estar, e então me deitei ao seu lado com a cabeça recostada em um dos troncos grandes que estava saliente. — Pois saiba que eu fiquei sabendo que você andou ficando careca. Ou você tem muito azar ou realmente está tentando ser expulsa, é sério. Agora quase se afogou... você foi parar na água sozinha como mesmo? — Questionei para tentar entender, realmente interessada em talvez impedir que voltasse a acontecer. Acabamos conversando mais sobre o assunto até nos sentirmos mais fortes e capazes de irmos até a enfermaria.

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