Quando cheguei ao meu escritório depois do jantar, Jean Gabin estava dormindo de barriga pra cima em minha mesa. Ele adorava se deitar sobre papéis importantes como as provas e tarefas de meus alunos. Me aproximei dele e fiz carinho em sua barriga. A maioria dos gatos não gostam desse tipo de afago, mas ele adorava. Em retribuição deu um breve bocejo e se espreguiçou, rolando para o lado sem fazer questão de levantar-se. — Está cansado, mon amour? — Perguntei enquanto me sentava na confortável poltrona de frente a escrivaninha e peguei o felino em meus braços, lhe fazendo mais algumas carícias antes de ganhar um lambeijo. Estava tão preguiçosa quanto ele, mas como o fim de semana chegaria logo e eu não o planejava gastar com correções, teria de fazê-las logo. A ferinha amassava pãozinho no meu colo antes de finalmente se acomodar em minhas pernas e voltar a dormir. Agora eu teria tempo para me dedicar ao trabalho, mas por onde começar?

Separei alguns post-it’s coloridos e os separei por ano de estudo, colando-os na parede em minha frente. A próxima hora fora corrigindo os questionários entregues pelos secundaristas. Eles estavam na fase de entender a ciência por trás da transfiguração, o que culminava em muita teoria e didática mais complicada. Sendo filha de um trouxa – não somente pelo sangue não-maj, eu sabia que nem todas aquelas crianças estavam no mesmo ponto de conhecimento. É importante compreender que alguém que nunca teve contato com a magia terá dificuldades diferentes de um aluno que a vivência diariamente. Isso só ficava mais nítido conforme ia lendo aquelas respostas. De qualquer forma, eles estavam indo muito bem. Risquei a atividade no post-it assim que encerrei as correções, colocando os pergaminhos na pasta designada.

Jean Gabin havia desistido do meu colo, descendo dele e indo para sua cama tão felpuda quanto ele mesmo. Dei uma espiada enquanto ele se aconchegava antes de iniciar o último trabalho da noite: avaliar os relatórios das aulas práticas do quinto ano. Só de olhar para os pergaminhos já dava para saber como os alunos haviam odiado preenchê-las, e gostaria de acrescentar que a leitura também não era o ponto mais divertido do meu dia. Ainda assim, se faziam necessários pra fixar os conteúdos e para garantir que se estivessem fazendo algo errado, eu poderia perceber e corrigir. — Je t'envie beaucoup. — Disse a ele. O gato havia sido um presente de aniversário do meu ex-namorado, vindo diretamente da França. Não era um animal falante, mas se fosse, provavelmente entenderia francês. De volta aos relatórios, passei mais longos minutos fazendo algumas correções, complementando respostas e rabiscando os trabalhos.

Os relatórios das aulas práticas deveriam responder o que o feitiço faz, de que forma faz, como a varinha deve ser manuseada para lançá-lo e o tempo estipulado de duração. A aula em questão tratava sobre a conjuração animalesca e como ela se adequa as leis de Gamp. O assunto costuma confundir os alunos, e é de se esperar. Na graduação, quando vamos mais a fundo no assunto, fica ainda mais embaralhado. Portanto, o relatório também servia de feedback para saber em que pontos eu não havia me feito clara. Não pude deixar de perceber que dois alunos possuíam as mesmas respostas, tendo somente mudado a ordem de algumas palavras. Peguei um post-it em branco para anotar seus nomes, e enquanto as letras se uniam para formar as palavras, lembrei de quando eu era a quintanista com preguiça de estudar. As recordações dançavam em minha mente, tão nítidas que pareciam terem sido capturadas recentemente. Ele ainda estava vivo, cheio de energia e de disposição, mergulhando no riacho dos botos para aproveitar o ensolarado e quente domingo à tarde. Eu estava escondida na sombra de uma árvore, tentando me esquivar dos jatos d'água, totalmente irritada por precisar de sossego para realizar um trabalho escolar. Sempre fui preocupada e controladora, de forma que mesmo não querendo estudar nada além de transfiguração, eu me obrigava a fazê-lo pois precisava de notas impecáveis. Das coisas que me arrependo foi de não ter sido mais como ele, de ter ficado emburrada com tantas coisas superficiais e não ter aproveitado mais com ele. Ainda dava tempo de mudar, e era a isso que eu deveria me apegar agora. — C'est une chanson en souvenir pour ne pas s'oublier sans rien dire... — Cantarolei enquanto anotava outra observação: lembrar de não ser tão dura com eles.

Jean Gabin deve ter acordado com a minha cantoria, pois tão logo voltei a folhear os papéis, lá estava ele se esfregando na poltrona. — Eu sei que está ficando tarde. Já vamos, prometo. Só mais cinco minutinhos. — Não sou linguista, mas sim teimosa o suficiente para acreditar que o bicho conseguia me entender. No início não era assim tão simples, mas acabou se tornando. Talvez seja o tom de voz que o alerta, mas era indiferente, pois eu continuaria falando com ele como se fosse um humano. Resolvi cumprir a promessa, e para tal, agilizei as anotações. A turma estava mesmo dedicada, o que me faria dormir mais feliz, sem sombra de dúvida. — Colando dos colegas ou não, eles souberam descrever o manuseio da varinha perfeitamente bem, Jean Gabin. Além do mais, foram poucos os que se confundiram sobre a lei de Gamp que se refere a animais. Esplendido! — Anunciei ao gato, que a essa altura estava se lambendo de forma bem aleatória aos meus comentários. Tive o cuidado de revisar os pergaminhos para ver se nenhum havia ficado sem a devida correção, e então os guardei na pasta reservada ao quinto ano. A essa altura todos já estariam em seus dormitórios, mas decidi que seria uma boa ideia fazer uma ronda rápida antes de ir para meus aposentos. Os olhos verdes do gato me encaravam enquanto eu fechava a sala, e me acompanhariam por toda a ronda e até o nosso quarto.