Uma tarde de sexta-feira livre não era comum, então planejamos nos encontrar no riacho dos botos para fazer nada, só que juntos. Talvez tomar um banho nas águas cristalinas ou colocar as fofocas em dia, tanto faz. Mavis estava sumida, Cecília também, e Julinho e Matteo estavam vivendo aquele romance diferenciado, de forma que eu não ia ficar segurando vela ou empatando os dois. Por outro lado, eu não poderia estar mais sozinha. Beijo pra mim era de-moça, pois só o que eu estava fazendo desde o fim das férias era estudar e trabalhar. Naquela tarde, no entanto, estaríamos juntos e era só o que eu precisava. Tratei de agilizar a rotulagem de alguns ingredientes recém coletados das estufas de herbologia, minha última tarefa para aquele dia. Teria sido, se eu não tivesse esbarrado com o garoto francês que também era estagiário de Castelobruxo. Ele parecia afobado, então forcei um sorrisinho e saí da sua frente. Não falo qualquer outra língua que não seja espanhol, português e inglês, e esse último é bastante restrito, mas também não faria a desagradável de passar por ele sem alguma interação. Além do estágio, temos em comum alguns amigos e absolutamente todas as aulas, só que não bateu, sabe? Ele não era uma ameaça nas aulas, aliviava minhas tarefas relacionadas ao estágio e de brinde não me enchia o saco. Perfeito, não é? Não, pois ele impediu minha passagem. Pensei que fosse sem querer da primeira vez, mas na segunda se fez bem claro. Dia errado pra me confrontar, amiguinho! Abri a boca para perguntar do que se tratava quando ele puxou a varinha. Sou uma pessoa bastante gentil, mas a ausência de uns carinhosinhos tem me deixado mais ranzinza do que minha gêmea, e qual é, ele estava me barrando e ainda catando uma varinha? — Como é que se fala “cai fora” em francês? — E foi aí que ele lançou um feitiço que traduziu o seu apelo por ajuda.

Eu teria dito não pois realmente estava precisando de um tempo com meus amigos, mas analisando a situação, seria negligência recusar. Nasci e cresci na Argentina, cuja língua oficial é o espanhol, mas todo os bruxos da América Latina aprendem português como segunda língua – caso não seja a primeira – para que estejam preparados para o período de escoteiro em solo brasileiro. O idioma do garoto podia até ter origem latina, mas era bem diferente. Já pensou se ele erra a pronúncia de algum feitiço e termina de matar o lobo? Além do mais, ele estava muito longe de casa. — Mejor que nos vayamos. ¿Está listo? — Já que ele tem tradutor, vou aproveitar. Não quis dizer pra ele que estava de biquini por baixo das vestes e com protetor solar na mochila, até porque eu só precisava da varinha e do meu talismã do sol, e eles estão sempre comigo. Comecei a caminhar em silêncio, velando a tarde livre que estava mais morta do que minha vida social. — Si vio al lobo herido, ¿por qué no lo ayudó antes de buscarte? No tiene sentido. — E não fazia mesmo. O animal estava perto dos limites protegidos do terreno, enquanto Auguste estava no castelo. Não era mais simples atender ao ferido do que se deslocar até aqui para que nos desloquemos de volta até lá? — Acelera el paso. No podremos contar con un lobo de medianoche para que nos lleve. — As criaturinhas costumam ser bastante amigáveis com humanos, mas quando se sentem ameaçados eles podem ficar bastante defensivos. Como eu nunca havia ouvido falar de um deles ferido, achei melhor não dar margem para que o saudável achasse que nós é quem tínhamos ferido o amigo. Depois de lidar com a união das caiporas, uma alcateia de lobos gigantes estava fora de cogitação. Aproveitei a caminhada para atar o cabelo em um coque para que os fios não enroscassem nos galhos secos da floresta e para tentar lembrar de feitiços de cura dos mais variados tipos, uma vez que não sabíamos que tipo de ferimento ele tinha.

Cheguei primeiro ao campo de quadribol por estar caminhando a frente do garoto, e não ao seu lado. Percebi que ele não tinha culpa alguma por minha vida estar uma completa porcaria, e que a forma como eu estava liderando a missão que sequer era minha talvez fizesse parecer que eu me achava melhor do que ele, o que não era verdade. Meu comportamento não estava ajudando, e foi por isso que resolvi voltar a agir normalmente. Não era exatamente estar banhando no riacho, mas dava pra socializar. — Como tem sido sua estadia? E o estágio? — Quebrei o silêncio fazendo tais perguntas, e embora não pudesse ter certeza, penso que ele talvez não estivesse esperando por tais perguntas. — Comecei a estagiar no início do ano passado. Cinco anos te preparam, mas ainda há muito a se aprender por aqui, e o trabalho ajuda. Com o tempo você vai ter tanta confiança que vai começar a caminhar na frente dos outros achando que tudo bem. — Estava me esforçando para parecer mais divertida. Nunca é fácil estar longe de casa, e bom, era o primeiro ano do garoto em Castelobruxo e ele não somente estava enfrentando a pressão de ser um veterano como também enfrentava um estágio. — Sinto que ninguém realmente conhece tudo que a natureza oferece por aqui, não importa por quantos anos estude. Essa é a beleza da nossa escola, mas também pode nos deixar um pouco inseguros. — Finalizei meu momento palestrante motivacional e o encarei com um sorriso no rosto antes de voltar meu olhos para frente novamente. Puxei a varinha e a mantive firme em minha mão direita enquanto a esquerda tocava o talismã pendurado em meu pescoço. Que o glorioso sol nos protegesse do que pudesse vir.

Lobos da Meia Noite são bastante fáceis de serem achados considerando seu tamanho avantajado e os brilhantes olhos vermelhos. — Shhh! — “Foque no que está ouvindo, Lorena.” Som do vento balançando os galhos das árvores. “Apague os sons inúteis da cabeça e busque o que realmente importa.” Pássaros cantavam e animais faziam sons comuns ao nosso redor, mas não era aquilo que eu estava procurando. Uma risada de caipora longe o suficiente e então, finalmente, um uivo baixinho e prolongado, quase sôfrego. — Por aqui! — Avisei a Auguste, novamente tomando a frente e tentando seguir o uivo que ficava cada vez mais próximo. Não poderia perder a pista, de forma que agilizei o passo e torci para que meu colega estivesse logo atrás de mim. Quando vi o animal deitado, congelei imediatamente, não por não estar preparada para curá-lo, mas por saber que o que tivesse feito isso com uma de suas patas, provavelmente ainda não estava tão longe. — Lascou-se! — Disse baixinho para Auguste ao ver o que nos esperava. Seríamos as próximas vítimas do ataque ou ele iria voltar para o lobo e o ferir mais?

Auguste era dedicado, isso eu poderia dizer sem sombra de dúvidas, mas talvez a afobação de ajudar tenha o deixado em desvantagem, pois o feitiço lançado não funcionou para nada além de estressar o bicho. Até onde me lembrava, estanque sangria era restrito a pessoas. Tentei não demonstrar o meu desapontamento, até porque não tínhamos tempo a perder. — Não chega perto dele. Eles não atacam humanos a não ser que se sintam ameaçados, e acho que esse é o caso. — Alertei, caminhando até uma distância considerável do animal. Eu tinha a vantagem de usar o escudo para me defender de um possível ataque, mas só o deixaria mais ferido. Tentei lembrar de todos os feitiços de cura que eu poderia usar na situação, mas não estava sendo exatamente fácil. Isso porque inner curats só funciona para hemorragias internas, ferula não tem efeito curativo e não serviria para torniquete, certo? Respirate é pras vias nasais, nada útil aqui, anestecsi funciona em pessoas somente e asclépio cicatriza cortes, o que não é exatamente o caso aqui. — A boa notícia é que relidor pode funcionar, e a ruim é que se funcionar ele pode conseguir uivar mais alto e chamar a matilha toda. Não vejo como eles conseguiriam ajudar, mas nos atacar achando que fizemos isso a ele, bom, isso eu vejo acontecer. — Eu estava começando a ficar desesperada, e dessa vez não tinha nada a ver com um possível retorno de quem fizera aquilo com o lobo, e sim sobre todo o sangue que estava perdendo. — Tem algo que podemos tentar... — Disse dando uma olhada preocupada para o frânces. — Mas talvez não funcione e o deixe mais aborrecido. Fique atento pra salvar minha pele caso se faça necessário, tá? — Avisei a ele, dando uma boa olhada para o animal mais uma vez antes de lhe apontar a varinha diretamente para a cabeça.

Meu plano consistia em basicamente fazê-lo dormir para que pudéssemos nos aproximar sem medo e tratar logo daquele ferimento. Torniquetes ajudariam a controlar o sangue até que conseguíssemos curá-lo. Se desse certo, somente iria passar vergonha. Era um feitiço simples, afinal. Aquilo não era sobre competir, então errando ou acertando, pelo menos tentaria aliviar a dor do bicho, que embora fosse grande, não poderia perder mais sangue do que já havia perdido. Me concentrei no feitiço, tentando visualizar o lobo em sono profundo. O que mais poderia fazer além de tentar? — Hypnus! — Lancei.

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