Minhas visitas ao Melão Violeta estão cada vez mais frequentes desde o Festival das Caiporas, eu acho. Na verdade, não sei precisar com exatidão como a doceria se tornou frequente em minha vida, mas, olha, é impossível não gostar do café fresquinho e puro do estabelecimento gerenciado por Manu. Sem falar nos quitutes psicodélicos do Hilário Freixo, embora, esses últimos precisem ser consumidos com moderação.
O que sei é que minha rotina mudou completamente quando pedi afastamento do hospital Maria da Conceição por tempo indeterminado. Geralmente, nas noites de quarta-feira, há não muito tempo antes estaria de plantão na ala de Urgência e Emergência do maior hospital bruxo da América Latina. Agora, dividia meu tempo entre minha casa em Porto Belo e os trabalhos como cantante amadora no Sorte Líquida e em outros lugares. Eu, Rebecca Ferreira Torres Dias, estou corajosamente me aventurando nessa vida de artista. Bem, não tão corajosamente assim, pois ainda trato tudo como um hobbie; tenho algumas letras guardadas, algumas ideias para música, mas  elas estão bem guardadas em meu caderno particular.
Às 19h, após um ensaio, resolvi fazer uma pequena parada no café para recarregar as energias, afinal, a noite tinha tudo para ser longa. Ao entrar no estabelecimento de cores vibrantes, procurei uma mesa mais afastada perto de uma parede azul e abri o caderno em uma página em branco aleatória.
Encarar a página em branco seja em um caderno, seja em uma tela de celular é complicado; eu bem sei. Ao logo desses 25 anos tenho certeza que mais amassei essas folhas do que deixei elas tranquilas, mas ocasionalmente lugares como cafés e parques me ajudam a escrever quando preciso.

Ao sair do bendito ensaio uma melodia animada perturbava minha mente, meus dedos sentiram necessidade de batucar e era preciso escrever. O clique da tinta na caneta estalou algo em minha cabeça que fluiu no ritmo da melodia. Palavras como cupido, internet, cantadas e falsificações foram desenhados em minha mente em forma de maneira irônica, com as sobrancelhas arqueadas e as mãos rápidas comecei a escrever. Em instantes, alguns versos foram escritos no meu caderninho das letras bagunçadas, quando parei para ler boa parte do que tinha escrito, me surpreendi. A inspiração vem de formas estranhas, meu povo.
― “Llegaste en tu carrito deportivo y dije: Llegó cupido… A sólo dos segundos de mirarte ya me habías convencido… Con tus gafitas oscuras, reloj elegante, pero de la China Lanzaste un par de frases de internet, de esas recién aprendidas…” ― Convertir as palavras escritas em português para a cadência do espanhol ao falá-las em voz alta.
― É, acho que pode sair algo daqui. ― Fiquei um pouco orgulhosa de mim mesma.
Não demorou muito e uma atendente veio saber qual seria o meu pedido da noite.
― Hoje vou querer um café, o de sempre e uma fatia do bolo de chocolate, por favor. ― Pedi. Assim que a mulher se afastou, voltei a me concentrar na minha canção divertida.
Será que ela continuaria divertida?  

A garçonete pôs o meu pedido no canto vazio da mesa, eu agradeci sem tirar os olhos das folhas do meu caderno. Senti a atendente olhar de soslaio um tanto curiosa diante da minha concentração, pois geralmente, costumo ser mais comunicativa que um aceno de cabeça e um singelo obrigada; porém, ela não disse nada. Certamente, exerceu algum julgamento e concluiu que eu devia estar concentrada em algo importante. Bem, estava concentrada porque ainda precisava percorrer um longo caminho para a composição próxima do ideal e não quero que a inspiração escorra pelos dedos sem ir parar no famigerado caderninho das ideias. Sim, eu sou muito neurótica com minhas letras, mas quem pode me culpar? Sou a combinação explosiva de duas famílias, no mínimo, surtadas. Logo, o gene familiar precisa aparecer de alguma forma no meu cotidiano, não é mesmo?
Um suspiro veio quando perdi a ideia. Depois de um começo ironicamente divertido as ideias sumiram e nem um título eu tinha ainda!! Honestamente, odeio esses momentos.
A caneta estava fincada na folha, mas sem avançar e foi nesse momento que alguém chamou minha atenção, mas de tal forma que meu olhar percorreu o corpo do intruso de cima abaixo, pelo menos, duas vezes. Um gole de café foi preciso para que eu processasse o reconhecimento instantâneo.
― Traqui, nene… ―  Disse recostando nas costas da cadeira, cruzando as pernas. ― Olha… Quem está vivo sempre aparece, né? Eu jurava que depois das últimas polêmicas você… hm… ― Disse com um sorrisinho de canto nos lábios. ― Fosse ficar um pouco longe dos holofotes. ―  Comentou colocando o copo de volta na mesa. A piada era boa até para os padrões nada engraçados da Ferreira Dias. Alejandro é um perro de la calle que não sabe ficar sem atenção, por mais que, muitas vezes, essa atenção não fosse lá muito positiva. Na vida do Rodriguez uma coisa é fato: o que o homem tinha de gostoso tinha de safado e desesperado.
―Sim, compondo. Ou pelo menos, tentando, mas ainda tá longe, lindo. ― comentou escrevendo umas últimas palavras no caderno antes de fechá-lo.
― Um feat… ― Disse com a sobrancelha arqueada. ― Me mostre seu material que daí eu posso até considerar, baby. ― Disse afrontosa, sem dispensar o sorriso dos lábios.