Era seu dia de folga. Bianca encontrava-se deitada no sofá da sala da casa de seus pais, tentando contabilizar quantos giros o lento ventilador de teto fazia em uma dada faixa de tempo, quando ouviu alguém bater à porta três vezes. Não moveu um músculo, permanecendo na mesma posição, encarando o teto. Se fosse carteiro, que deixasse na caixa de correios; se fossem vizinhos, não estava afim de conversar no momento. Após uma longa pausa sem barulho algum, a visita inesperada foi embora, concluiu.

Ha cerca de um ano ela possuía um emprego de meio período na sorveteria do bairro não-maj onde seus pais moravam, esse era um dos motivos pelo qual havia voltado a morar com os mesmos. Sem contar o trauma do acidente ocorrido no ano anterior enquanto ela ainda fazia parte da força tarefa dos aurores. Aquele foi o ponto de virada para que a loira desistisse do mundo mágico de vez, pensava até em prestar vestibular para alguma faculdade assim que as inscrições abrissem.

Hipnotizada pelo giro do ventilador, ela caiu no sono. Tec, tec tec. Ela virou para o outro lado. TEC, TEC, TEC. O barulho insistente acordou-a no momento em que ela ia beijar aquele cara de sua série favorita. É, ela estava precisando de uma vida. Revirou os olhos e sentou-se. Olhando para a janela de vidro, se assustou com o que viu: uma coruja com uma carta no bico. Faia tempo que sua pacata e monótona vida não era incomodada com assuntos do mundo bruxo. Quem a estava escrevendo?

Assim que abriu a janela, a coruja marrom entrou voando e descreveu alguns círculos ao redor da loira, que ofereceu o braço como puleiro para a ave. Era de Castelobruxo, viu pelo selo, o que a assustou ainda mais. Não podia ser algo errado com seu irmãozinho, podia? Estavam em período de férias, afinal. Talvez fosse a lista de materiais para o próximo ano. Então, checou o destinatário no verso e viu seu nome completo escrito com a caligrafia de Verônica Dourado. Imediatamente, rasgou o envelope e começou a ler o conteúdo da pequena carta que jazia ali dentro. Ao terminar, Bianca se sentou vagarosamente no de volta no sofá. Não esperava ler aquilo. A nova diretora da escola a estava convidando para ser a nova professora de Artes de Defesa e Combate.

— Deve ser um engano. — Debochava incrédula. — Engano, minha filha? Como? Bianca Alice Torres. É o seu nome. — Respondeu a bruxa mais velha durante o jantar, enquanto a carta flutuava ao redor da cabeça das quatro pessoas sentadas à mesa. Marcos, seu irmão, apenas mastigava o jantar sem dizer uma palavra sequer. Seu pai, por outro lado, parecia orgulhoso. Sua mãe, que sempre tentou tirar a filha do mundo da magia — mesmo sendo ela a bruxa de sangue puro da família —, pairava entre o orgulho e o pesar.


— Tudo bem, senhora. Ahn- Verônica. — Respondeu à diretora de Castelobruxo pouco antes de abrir a porta de sua sala e parar no corredor. Pela conversa que teve com a nova diretora viu que seu interesse em contrata-la como professora foi por seus feitos — que não eram muitos, admitia — enquanto auror. "Com tanta gente mais capaz..." Bianca respirou fundo algumas vezes antes de voltar a caminhar pelos corredores vazios da escola. Queria se ambientar novamente, afinal já haviam se passado oito anos desde sua última visita ao castelo. Algo devia ter mudado, certamente. Havia aceitado o cargo oferecido, mas ainda não sabia o que fazer a respeito. Sequer sabia se havia superado totalmente seu trauma com o uso da magia.

Passou boa parte de sua manhã balançando seu vestido vermelho florido pelos corredores da escola antes de sair para a área exterior. Em sua bolsa carregava um pouco de fumo para as caiporas se acaso encontrasse alguma. Queria ver o riacho dos botos mais uma vez antes de voltar para casa e explicar pra sua mãe que havia decidido aceitar o cargo, o lugar lhe trazia boas lembranças de sua infância.

Após caminhar por alguns minutos na área externa ao norte do castelo, finalmente chegou. Sob a superfície da água cristalina podia-se ver diversos peixes das mais variadas cores, fugindo de seus predadores ou simplesmente nadando em busca de alimento. Até o ar ali era mais gostoso de ser respirado. Puro, mágico. De olhos fechados, Bianca encheu seus pulmões e se sentiu preenchida com a calmaria que o ambiente emanava. Sorrindo a toa, livrou-se de suas sandálias e caminhou pelo píer para se sentar à borda  mais distante da margem, com os pés na água.

A distração de Bianca com os peixes nadando ao redor de seus pés parados dentro d'água a impediu de ver que não estava sozinha ali. Um assovio agudo e contínuo cortou o ar e preencheu seus ouvidos, o que fez com que sua cabeça se levantasse, em reflexo. Não muito distante havia um homem estranhamente familiar, com os sapatos amarrados no cós e a calça em coloração degradê escuro devido a parte mais baixa molhada pela água do riacho. A mão levantada no ar indicava um cumprimento. Com os olhos apertados devido ao sol, a docente acenou e sorriu em resposta.

"Provavelmente outro novo funcionário." Os não-maj não conseguem chegar tão perto da escola e, aparentando tão jovem, não havia como ele estar trabalhando na ali a muito tempo. "É, Verônica deve estar mudando toda a equipe mesmo.", suspirou, espantando os peixes com alguns movimentos bruscos de seus pés. Suspeitava que ela não seria a única, dados os boatos e insatisfação da comunidade bruxa com o trabalho da neta de Benedita, cujo nome vivia estampado no Globo de Cristal sem ao menos ter começado o ano letivo.

Com um leve espasmo de susto, Bianca virou-se para onde uma voz masculina surgiu. Com a mão esquerda no peito, abriu um sorriso bobo e envergonhado com a situação. — Você quer me matar? — Brincou. Mais duas pessoas havia se juntado a ela no riacho. O homem era Miguel; calouro da loira, um garoto franzino que vivia em situações vexatórias causadas a ele por seus próprios amigos. Situações essas que, muitas vezes, eram finalizadas pela interferência das azarações de uma versão reduzida e furiosa de Bianca. Agora, era um homem adulto e particularmente bonito, por assim dizer.

A mulher que o acompanhava parecia lutar consigo mesma numa tentativa falha de se esconder atrás do maior. Morena, como ele, assim tão perto podia-se dizer que eram parentes devido a semelhança. Conteve o impulso de chama-lo de Guel, seu apelido da época de estudantes. Oito anos depois, não tinha mais intimidade pra isso; sequer sabia se ele lembraria dela. — Ahn, sim. Sou a nova professora de artes de defesa e combate. — Respondeu ainda sorrindo. — A propósito, Bianca. Lembra de mim? — Dispensou a formalidade de estender a mão para o rapaz, julgando desnecessário. — Qual o seu nome, moça? — Com seu corpo levemente esticado para trás, direcionou sua pergunta, agora, para a morena de vestido que ainda insistia em sua tentativa de desaparecer atrás do outro.

"Ok... O que está acontecendo?, pensava, calada enquanto sentia certa tensão no ar durante a conversa entre os dois homens. Lembrava-se do passado, quando eram apenas crianças e estudavam ali em Castelobruxo. Por mais que tivesse acumulado boas memórias daquela época, poucas incluíam Rodrigo, e Bianca esperava que uma cena como as que costumavam acontecer não se repetissem ali, afinal, agora eram homens, certo? Sim, não se pode esperar muito dos homens, ela aprendeu por experiência própria, mas não custava nada dar um voto de confiança aos seus colegas de trabalho. Tudo bem, Paula parecia um tanto quanto insegura — talvez até infantil — demais, mas isso não era motivo para que Rodrigo a destratasse e, aparentemente, ele o tinha feito no dia anterior. Só mais um macho sendo macho, nada novo sob o sol.

Bianca respirou fundo e tentou sorrir quando Miguel respondeu a pergunta que fora direcionada a ela, claramente irritada. — É... Fui auror por um tempo. — Respondeu, sucinta. Não havia muito mais o que falar, notou pelo comentário do outro docente: "você foi bem citada aqui no castelo", e como não seria se o jornal só falava daquilo? Restava saber se a opinião dos alunos sobre ela seria positiva ou negativa, mas sendo azarada como é, esperava o pior. — Isso é tudo o que espero. — Disse, com um sorriso aliviado. Mal havia aceitado o novo cargo e o começo do ano letivo sequer estava próximo, mas a louca já começava a se preocupar com o que os alunos pensavam dela, se a conheciam.

— Ah, vocês já estão indo? — Perguntou, calma, e olhou pa seu relógio de pulso. — É... Acho que vou aproveitar a deixa. — Deu de ombros. Estava, realmente, ficando tarde e ela não queria ficar ali sozinha com Rodrigo. Que assunto teriam para conversar? — Você também vai, ou vai esperar se secar? — A pergunta foi direcionada para o homem que reclamou dos sapados encharcados no minuto anterior com sua grande ideia de executar um ensaio pro "de férias com o ex". Pensar nisso fez Bianca sorrir, Rodrigo, sendo quem é — ou era alguns anos atrás —, era difícil distinguir a veracidade daquela hipótese.