Vagando pelos cômodos da minha propriedade, acompanhado da edição de bolso da mais recente releitura de uma coletânea de contos antigos que me foram apresentados por um amigo especial da infância, melhor dizendo: um irmão. A leitura deste conto me remete ao passado do orfanato que me foi lar durante nove anos da vida, o suficiente para cravar trágicas lembranças deste período no fundo das minhas memória, permanecendo intactas e constantemente presentes nos meus pesadelos. Faz parte de quem sou. São Mogúncio construiu minha pessoa, e devo reconhece a ímpar capacidade de filtrar valores construtivista convenientes do que me era aplicado com severas instruções durante aulas que participei todos os dias no orfanato, todas as crianças tinham entre cinco e quinze anos, todas dotadas de Magia e nenhum elo familiar com alguém vivo. Fracasso era duramente punido pelos mais bárbaros e criativos métodos executados pelos responsáveis à nossa “educação”, os chamados “Tratadores”.

Aquelas velhas paredes da mansão Dieter Teodorico firmaram o líder inegável que me tornei, e de meu tempo na década magoada aprendi os fundamentos da integridade fazendo bom uso da astúcia infantil e a genial perspectiva dos acontecimentos ao meu redor, qualidade conservada desde que tão jovem. Mas não confundo a origem dos meus alicerces: devo tudo o que conquistei à minha inteligência e outras virtudes atreladas ao intelecto, e não às cicatrizes do meu sofrimento. Viver com base nas feridas da alma certamente me corromperia, aprendi isso com o único orientador que me amou na vida. Ele foi capaz de anexar valores dignos a uma mente brilhante, porém deturpada pelos “Tratadores”.
Seu nome era Haytham, a pessoa mais astuciosa e inteligente que conheci. Haytham me mostrou um caminho sensato para o que me estava destinado no futuro, por tal gratidão, eu o considerei a única família que jamais tive, e contradizendo a figura madura atrelada aos atributos mencionados, meu amigo tinha só onze anos quando nós conhecemos, sendo apenas três mais velho do que eu. Ao Haytham devo Minh a liberdade, a ele devo a vida, mas nunca serei capaz de retribuir...

Algumas horas se passaram e por ventura adormeci no sofá da sala de estar durante a leitura dos contos antigos. Dou conta de que Seth e Éris se juntaram a mim no que tivera sido uma tarde de sono no chalé do lago Bled. Seth se alinhou entre mim e a beira do sofá confortável, Éris por sua vez se contenta com o tapete no chão, porém atenta a segurança do lar ela talvez nem tenha dormido ao contrário do irmão e o dono. Eles são uma dupla de Doberman que adotei anos atrás, Seth é a única herança deixada por meu irmão, Haytham. Em troca do meu cuidado e afeto os cães desenvolveram um senso de lealdade bastante único principalmente no aspecto de segurança, já que ambos me fazem companhia constante no trabalho, esbeltos e de postura elegante, são animais que escondem a agressividade em si e tem garantia de livre acesso aos locais que frequento, tão afinados que independem de guia para se locomover adequadamente entre até mesmo uma multidão. Vigilantes dedicados a resguardar minha preservação à possíveis ameaçam que atentam contra minha vida. Considerando a evidente indiscrição da relevância que represento por ocupar um cargo político tão estimado na alta cúpula do Estado bruxo. Minha vida tem alto preço por quem se interesse no meu silêncio, por isso os cães se certificar de que nenhuma aproximação ou contato suspeito interfira no meu caminho quando em exercício dos negócios diários no cotidiano. Em casa, sendo este o lugar mais seguro que os animais conhecem, eles ficam a vontade o bastante para limitar suas preocupações ao lar e a farra de um banho no nosso lago.
Voltei para a cama ao anoitecer, depois de me servir da refeição preparada para o almoço que não aconteceu pois estava apagado no sofá da sala com meus cães e um livro no rosto.
– Afinal, tem sido uma vida sossegada demais para alguém com os problemas do mundo-moderno nas costas – Murmurei descontraído para as estrelas cintilantes do céu escurecido na janela de meu quarto.