Cecí

Vicente costumava ouvir de sua mãe que algumas pessoas vivem mais em vinte anos do que outras vivem em oitenta. O garoto não havia sequer completado dezesseis e sua vida dava forte indícios de que não seria nada pacata. O tempo parecia passar de forma desenfreada, como se tentasse deixar para trás tudo que vinha acontecendo debaixo do manto esverdeado de Castelobruxo, mas o Ventura tinha suas dúvidas a respeito de quanto tempo levaria para que suas memórias passassem despercebidas em meio ao turbilhão de pensamentos. Vinha mantendo seus dias os mais cheios possível, para que quando se deitasse sozinho no alojamento masculino dos carcarás, o cansaço batesse rápido o bastante para que ele fosse tomado pelo sono antes de qualquer pensamento ruim atingir sua mente.
No momento, prestava atenção no sotaque engraçado do professor, que se esforçava para pronunciar o português corretamente, apesar de carregar todas as palavras com um acento pesado e afetado. O tema da aula seria o feitiço Abaffiato e, levando em conta os acontecimentos recentes, seria muito interessante aprendê-lo corretamente. É verdade, Vicente podia ser bom em muitas coisas, mas feitiços não eram seu forte. Não importava quanto se esforçasse, quanto estudasse os movimentos que devia fazer com o condão de jatobá...Em algum momento entre a ideia e a prática algo saía de seu controle, impedindo a execução perfeita.
Estava disposto, no entanto, a praticar quanto fosse necessário para que não falhasse miseravelmente em outro momento crítico.
Um suspiro escapou de seus lábios, incomodado ao perceber que a atividade seria em grupo. Ele era um ser sociável, estava sempre cercado dos amigos e era assim que se sentia bem, mas naquela tarde seu humor não era dos melhores. E, para piorar, sua dupla na atividade acabou sendo Julio Torres.
Vicente não tinha certeza, mas os boatos que corriam pelos corredores diziam que Julio havia sido o romance de verão de Luca Coelho, antes que começassem o namoro. De braços cruzados em frente ao peito e expressão entediada, Vicente avaliou o garoto à sua frente e acabou exprimindo um resmungo impaciente e, por que não, enciumado. Eram bem diferentes um do outro e, apesar de tudo, Vicente entendia Luca. É claro, Julio não era tão interessante quanto ele próprio, mas tinha lá seu charme.
Sacou a varinha de jatobá do bolso da calça, mirando-a para o espaço entre ele e o colega de turma, sem ter certeza de para onde devia apontar e qual movimento deveria fazer.
A voz saiu firme quando recitou- Abaffiato! - Pela primeira vez, depois de observar como seus colegas agitavam os condões ao pronunciar as palavras, repetindo o gesto aprendido. Arqueou as sobrancelhas para Julio, incerto de que o feitiço havia funcionado de fato. Estava fazendo certo? Duvidava grandemente.
Umedeceu os lábios, desta vez fitando a própria varinha como se a encorajasse a colaborar.
_Abaffiato! – Recitou mais uma vez, desta vez com mais confiança e pronunciando a palavra com clareza - Eu acho que ninguém está ouvindo. - Inclinou a cabeça, observando os colegas por alguns segundos e elevando a voz no momento seguinte, numa tentativa de chamar a atenção. -  Hey, tem alguém ouvindo?
Talvez estivesse sendo apenas ignorado, mas ele duvidava. Aparentemente, o feitiço estava funcionando, e agora restava-lhe conversar com o Torres. Mas, ao contrário do que esperava, o garoto disparou uma brincadeira, fazendo Vicente desmanchar a carranca e exibir o bom e velho sorriso. Foi o sorriso discreto de Julio que revelou que não estava falando, exatamente, do som produzido pelos feitiços pobremente executados. Era do sotaque carregado do novo professor que o garoto se referia.
_O gringo tá se esforçando, pelo menos. – Deu de ombros, sem querer soar convencido. Tinha nascido com o dom de falar todas as línguas, mas imaginava que sua língua nativa não era nem um pouco fácil de ser falada, principalmente considerando todos os sotaques e diferenças regionais. - Ouvi dizer que você é bom no quadribol, devia jogar com a gente um dia desses.
O assunto foi levado de forma casual enquanto foi necessário e Vicente, que havia ficado incomodado a princípio, acabou relaxando ao final da atividade. Logo, o feitiço foi perdendo a força e esmorecendo, até que a sala estivesse novamente tomada pelo som dos adolescentes.