Virgílio arrumou novamente os cristais coloridos em cima da mesa. Um ar sombrio pairava sobre a COMASUL naquela manhã, e ele precisaria de toda a proteção possível para não se deixar afetar. Os últimos meses haviam intensificado o clima de incerteza que pairava sob a organização e as consequências disso podiam ser vistas nos rostos dos funcionários. Os semblantes cansados e as olheiras profundas tornavam-se cada vez mais comuns à medida em que o descrédito no governo bruxo aumentava mais e mais.

O ofidioglota balançou a cabeça na tentativa de afastar aqueles pensamentos. Não ajudaria em nada se ficasse com a cabeça na lua. Ele se levantou com uma pequena prancheta nas mãos, checando rapidamente suas responsabilidades do dia. Enquanto saía do prédio administrativo, não pôde deixar de se maravilhar com a exuberância que se espalhava por cada canto da sessão 4. Se se esquecesse dos prédios aqui e ali, era quase como caminhar através de uma floresta verdadeira.

Assim que chegou a seu destino numa das muitas salas do centro de pesquisas, sua atenção foi atraída para um grupo de bruxos conversando ao redor de uma mesa. Usavam diversos tipos de proteção enquanto interagiam com toxinas extraídas de seis plantas diferentes. Ele não poderia culpá-los pelo cuidado extra, uma vez que a lista de espécimes sendo estudados estava entre os mais venenosos da flora amazônica. Ao que parecia eles estavam tentando produzir um antídoto único que funcionasse para envenenamentos provocados por qualquer uma delas.

Como os pesquisadores estavam muito focados no que faziam, Virgílio precisou pigarrear para que notassem sua presença na entrada. Logo diversos pares de olhos se focaram no estagiário com uma prancheta na mão, fazendo com que o ofidioglota se sentisse um pouco tímido. A que parecia ser a líder saiu da área de estudo e se aproximou fazendo uma saudação cordial. Provavelmente dera um sorriso, mas era difícil perceber por detrás da máscara.

Ela lhe disse que por enquanto estavam apenas arrumando os materiais de estudo, mas que logo começariam com os experimentos. Basicamente o que Virgílio precisaria fazer era anotar o que ela lhe ditava e ficar atento ao trabalho dos pesquisadores. Não seria o dia mais emocionantes de todos, mas pelo menos estaria fazendo alguma coisa. Seguindo as próximas instruções, ele se dirigiu até a parte de trás da sala e vestiu os equipamentos de proteção que estavam a sua espera. Monteiro não teria contato direto com as toxinas, mas era melhor prevenir do que remediar.

Logo que os pesquisadores começaram seu trabalho, a líder começou a ditar os procedimentos que executavam e os resultados que obtiam. Ela usava uma linguagem científica um tanto complicada, mas nada complexo demais para que o ofidioglota não pudesse entender. Eles se revezavam entre usar suas varinhas e os apetrechos de laboratório, realizando um progresso lento e cuidadoso.

O Ataíde Monteiro reconhecia boa parte das espécies mencionadas, já que possuía um bom conhecimento sobre flora mágica, mas era justamente as coisas que não sabia que atraíam seu interesse. O estudo do ecossistema, fosse mágico ou não, nunca deixava de fasciná-lo. Sempre haviam novas coisas a aprender e novos segredos a explorar. As possibilidades pareciam realmente infinitas.

Os experimentos duraram pouco mais de uma hora, e Virgílio anotara bastante. Ele se aproximou da pesquisadora chefe com um pouco de receio logo depois de retirar as folhas da prancheta. Ela as recebeu enquanto os outros guardavam os materiais para uma continuação do estudo numa data futura. A mulher deu uma olhada rápida na escrita do estudante e apesar de fazer um cometário debochado sobre sua caligrafia, agradeceu-o por captar as palavras que ditara. Uma onda de alívio desfez boa parte da tensão que dominava a mente do garoto, e ele se preparou para devolver os equipamentos de proteção e partir para sua próxima atividade do dia.

Realmente era bem mais divertido passar seu tempo cercado por toda a beleza natural da seção 4 do que mofando dentro de casa. A única coisa que poderia melhorar seu dia seria a presença de um certo rapaz. Virgílio se permitiu parar um minuto para pensar em Leonard, um rubor leve passando por seu rosto enquanto lembrava-se do sorriso do ruivo. O chamado de um supervisor o tirou de seu devaneio, trazendo-o de volta à realidade. Teria todo o tempo do mundo para sonhar acordado depois, mas agora precisava trabalhar.

A próxima atividade de Virgílio também envolvia plantas venenosas, mas de uma maneira menos direta. Ainda se lembrando da repreensão que ouvira agora à pouco, ele se deslocava velozmente em direção ao escritório de realocação. O espaço era algo realmente impressionante. Uma enorme quantidade de animais era cuidada e observada pelos magizoólogos residentes, espécies tão numerosas e variadas que coloriam o lugar como um verdadeiro arco-íris.

Ele andava pelo edifício com um sorriso abobalhado e um olhar sonhador, imaginando um futuro não tão distante onde participava de missões para resgatar criaturas feridas e catalogar espécies desconhecidas. Mas, apesar de suas tentativas de manter a positividade, era difícil conservar otimismo quando as expressões de cada vez mais pessoas pareciam ser tomadas pela desesperança. Tempos de mudança estavam vindo, mas não necessariamente uma mudança para o melhor.

O estudante eventualmente chegou a seu destino, uma sala branca relativamente pequena que contava apenas com outra criatura além dele. A velha serpente descansando sob um maca tinha diversas cicatrizes pelo corpo serpentino, ou como ela mesma gostava de chamá-las: medalhas de honra. Cada uma delas marcas tinha uma história e a jiboia se empolgava toda vez que contava alguma delas. Virgílio se divertia em ouvir a anciã, já que seus relatos pareciam aumentar toda vez que ela os contava.

Seu inimigo hoje, no entanto, era mais lento e mortal do que qualquer outro que já havia enfrentado em sua longa vida. Ela havia ingerido uma presa que foram envenenada por algum tipo de toxina logo antes de ser capturada. A fonte do veneno ainda era desconhecida, mas os magizoólogos já tinham certeza de que a presa havia sido intoxica intencionalmente.

O sangue de Virgílio gelou enquanto ele se lembrava disso. O nível do veneno era tão potente que tornaria a carne do animal imprópria para o consumo de qualquer ser humano ou jiboia. Já haviam descartado a possibilidade da substância ter partido de um predador, e estavam trabalhando com a possibilidade de que uma pessoa tivesse praticado aquele ato nefasto. Até alguns meses atrás ele não conseguiria conceber a possibilidade de alguém fazer algo tão cruel por qualquer motivo que fosse, mas depois do assassinato de Álvaro ele começara a ver o mundo por lentes mais sombrias.

A serpente pareceu notar o tumulto no coração do garoto e virou a cabeça curiosa em sua direção. Virgílio desfez sua expressão preocupada enquanto um sorriso ocupava seu rosto. Ele respirou fundo e se aproximou da jiboia. Apesar da gravidade de seu estado quando chegara, a cura da anciã já era quase certa. Seu peito se aqueceu enquanto se lembrava de sua parte em sua recuperação. Eram momentos como aquele que o lembravam de que era possível vencer a maldade do mundo trabalhando dobrado para fazer o bem.

O ofidioglota passou o resto da manhã conversando com a velha jiboia e anotando na prancheta enquanto checava seus sinais de melhora. Ela já respirava normalmente e tinha uma movimentação bem melhor, mas precisava descansar por pelo menos mais dois dias antes de estar em condições de deixar aquela sala. Aquela realmente fora a parte mais tranquila de seu dia, mesmo que ele permanecesse focado no que fazia.

Quando o magizoologista que cuidava da situação da serpente chegou algum tempo depois, o animal estava com um humor muito melhor, revigorado pelo diálogo com o estagiário. Virgílio se despediu dos dois com um aceno de mão e com um sorriso enquanto seguia para comer seu almoço. Ainda restavam algumas atividades na prancheta e ele mal poderia esperar para concluí-las.