— Riva, vá! — Ele gritou, ainda que as palavras não tivessem volume algum quando escaparam de sua boca. A dor o envolvia de tamanha maneira que lhe era impossível sequer mandar um olhar para o carrinho que, em uma inocência infantil, acreditara que não se misturaria ao embate que se desenrolava a uma questão de metros dali. Sentiu que o corpo era arremessado contra uma estante, realidade e ilusão se misturando enquanto Diego sentia livros apertando suas costelas ao mesmo tempo que tinha completa certeza de que estava na loja de animais. — Ela está aqui, você não pode ficar aqui! — Tentou repetir, vendo o bebê flutuar a sua frente. Os vívidos olhos azuis que, naquelas poucas semanas de convívio, o Reitz se enganava afirmando serem idênticos aos seus, escureceram em ódio e decepção. A face vulnerável do bebê estava transfigurada em acusações, não falava, tampouco o amaldiçoava, mas Diego sentia um milhão de navalhas partindo daqueles olhos diretamente para seu coração. Quando a dor estava prestes a matá-lo, partir, literalmente, seu coração, ele acordou.

Os pesadelos acompanhavam-no já há alguns meses. Uns piores, outros mais suaves, mas sempre persistentes. Não desapareciam tão logo enfrentava a realidade, visto que seu horror maior era o plano físico, onde tudo aquilo começara. Aurora já havia sido liberta, por aqueles que Diego acusava de serem também os raptores de seu filho, mas ele tampouco fizera qualquer gesto de ir atrás de sua amada. Acompanhara as notícias e a observara de longe, em busca de qualquer pista, mas, depois de tanto tempo, sentia-se mergulhado em uma espiral de vergonha e tristeza auto infligidas. Assim como no sonho, Rivaldo não era capaz de se defender, sequer de falar, como o varinhologista podia manter esperanças de que o recém nascido sobrevivesse a tamanho descaso?

Fora obra do destino pô-lo em seu caminho, em situações tão adversas que aparentava que o próprio nascimento da criança estava amaldiçoado, mas o Guimarães esgotara aquela pista logo no início do ano: Nem Rodrigo, ainda desaparecido, tampouco Raíssa apresentavam sinais de carregarem um fardo negativo com o bastardo qual Diego jamais descobrira o pai. Ainda incomodava-lhe o fato que justamente o fatídico dia dezenove de agosto, data de nascimento do menor, também fora a data da extinção quase completa dos demais Kaefer Dutra, mas, ao que tudo indicava, fora uma infeliz obra do filho de Nix, Moros, o deus do destino.

A este mesmo deus, Diego atribuía a muito inusitada mensagem que veio horas depois de despertar. Um convite com a certeza que lhe restituíriam o filho. Não acreditava, mas tampouco poderia deixar a oportunidade passar. Sua vida tornou-se um enorme breu, pontilhada por visitas ao Beco do Padre ou outras viagens menos corteses que lhe davam um sopro de direção. Todas, até então, infundadas, assim como os aurores permaneciam em um beco sem saída, mas ao menos o loiro conseguira reaver partes de sua memória ainda que com algumas falhas (mesmo deixando parte considerável de sua riqueza pelo caminho.)

O céu obscurecido pelas pesadas nuvens de neve não fazia muito a disfarçar a identidade do bruxo que destacava-se, abundante em fios dourados, no eterno inverno sulista. Em suas incursões pelo Beco do Padre ainda enfeitiçava o cabelo para torná-lo curto e negro, mas visava menos o incômodo de um auror em seus pés do que seu próprio anonimato. Não existia mais vida para si, não depois de falhar na proteção ao filho único de Raíssa, o qual jurara proteger como se fosse seu próprio. — Boa noite. — Cumprimentou, mais por hábito do que desejo de ser educado. Diante daqueles olhos estranhos da Gonçalves, sentiu um arrepio cruzar suas costas, uma nuance de sua forma animaga lhe avisar que conhecia aquela mulher, ainda que o bruxo em si não conseguisse recordar de sua participação direta no sequestro. Moveu o indicador de forma a tocar a ponta da varinha, presa ao redor do pulso, para tranquilizar-se com a presença da madeira de cedro. — Onde está meu filho? — Questionou, sentindo uma falha mínima denunciar a urgência de seus sentimentos em seu tom de voz enquanto seguia a mulher para onde, não sabia ainda, mas encontraria Rivaldo, já no corpo de um chorão bebê de seis meses.

Meio incrédulo ainda, sem entender as informações que a des-conhecida lhe passava, mas ansioso por confiar em suas palavras, Diego seguiu. Varinha empunhada no instante que ela o antecipou apenas para no instante seguinte, contrair as sobrancelhas em absoluta surpresa. Havia verdade nas promessas de Úrsula ou tudo não passara de uma frustrante confusão para que o Reitz se deparasse com o corpo seminu, de costas, a sua frente?

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A visão do corpo de Úrsula ainda provocava uma confusão de pensamentos na mente do Guimarães e o único fato que permitiu sua tentativa de defesa foi o alerta prévio, que o fez entrar no ambiente com a varinha já empunhada. Passou pela capa abandonada no chão e, naquele segundo único necessário para entender quais eram os demais integrantes daquele encontro fatal, não teve tempo de visualizar o filho no braço de Esther – sua mente ocupou-se muito mais em projetar uma defesa para o feitiço lançado em sua direção. — Protego!

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Mesmo assim, o encanto não foi o suficiente para barrar o ataque que veio em sua direção. Diego sentiu os olhos arderem e a sua visão se tornar um borrão. Escadas, paredes e pessoas se confundiam em uma mistura de cores, prejudicando a noção de localização do bruxo e, principalmente, sua noção de quem atacar. O braço moveu-se sozinho, confiando nos segundos anteriores ao ataque para lançar o encanto seguinte, as palavras escapando em um acesso de dor e raiva. Naquele mesmo período do ano anterior, a falha seria o suficiente para Diego recolher-se em seus ferimentos e agir mais em defesa do que ataque, mas tanta água tinha passado por aquele rio e ele definitivamente não era mais o mesmo homem. — Dormentia! — Lançou, cuspindo o encanto sem hesitar. Agora atacava para matar ou morrer, não era como se sua vida valesse alguma coisa, afinal.

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O Guimarães ainda não tinha recobrado a visão, mas felizmente os outros sentidos não tinham sido afetados. O chão continuava firme sob seus pés e os ouvidos afiados o suficiente para reconhecer o gorgolejo de um bebê próximo o suficiente para acelerar o coração sob seu peito. Ele não tinha como ter certeza se era Rivaldo, mas precisava ficar vivo o suficiente para descobrir. A dica de Úrsula ainda soava uma mentira para seus ouvidos, fora fácil demais – depois de toda busca, seu menino ser entregue de bandeja –, mas aquele duelo não se tornara tão agressivo à toa. Esther tinha algo a esconder, ela o conhecia. Só podia ser Rivaldo. Diego sentiu a adrenalina impulsionar seu corpo inteiro para frente, seu braços e pernas sendo substituídos por enormes patas felinas enquanto o dorso do homem se transformava em pleno salto em uma onça-pintada, indo na direção da voz que rebatera seu feitiço. A boca aberta expunha os dentes mortais da fera em um rugido que saia diretamente do peito do animago, o cheiro dava-lhe direção: a face desprotegida da Gonçalves.

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A dor atingiu-o em cheio na pata esquerda, mas mesmo o ataque rebatido da Gonçalves não foi possível para retardar a ação já em desenvolvimento pelo bruxo, do ar não tinha outra direção que não para baixo. Era a força da gravidade em ação. Mesmo a dor absurda em seu braço/pata apenas incendiou ainda mais o coração repleto de ódio do Guimarães e despertou-o para uma nova reação, agora com o efeito do primeiro encanto lançado em sua direção se dissipando, pode ver que logo nos braços de Esther estava Rivaldo.

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A mandíbula fechou-se com um baque surdo, a dor que atingira sua pata agora emanava pelos ossos de sua face tamanho ímpeto tinha direcionado para dilacerar o rosto da sequestradora. Por um lado, a frustração o envolvia, mas por outro não podia ter sido atingido em melhor hora. Jamais poderia se perdoar se, tão perto, provocasse mal a Rivaldo. Aterrissou no chão com estardalhaço, mas felizmente o couro da criatura na qual se transformava o protegeu de ferimentos maiores. Ergueu-se com as quatro patas no chão, pesava mais de cem quilos e os movimentos, ainda que cuidadosos, eram ameaçadores por si só. Mesmo em forma animalesca mirou com o olhar o bebê envolto pelo braço da Gonçalves, tentando articular uma forma de separar ambos para aí sim retomar a postura de ataque.

Quando Esther sentou-se, Diego pensou que sua oportunidade tinha chegado. Aguardou que Rivaldo fosse liberto ao chão, com um mínimo de inteligência, talvez ele pudesse engatinhar para longe ou até mesmo caminhar? Questionou-se, sem fazer a mínima ideia de que ações um bebê daquela idade podia ter. Poderia Riva ter se afeiçoado à sequestradora? Tivera ele esquecido de sua face? Bem, sendo Diego naquele instante uma onça não estava em sua face mais agradável a um bebê.

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Tenso na expectativa de algum gesto, não conseguiu entender a ilusão do cenário quando o dom da Gonçalves o acertou. Era como se a selvageria do felino preenchesse toda suas veias, a mente ficou confusa acreditando que Úrsula, a única que tinha lhe ajudado até então naquela busca, era sua pior inimiga. Trazê-lo até ali, apenas para matar seu filho diante de seus olhos? Um rugido misto a um gemido escapou por entre seus bigodes e logo as presas da onça estavam novamente a mostra, direcionadas naquele momento para a irmã de Esther. As quatro patas fixas no chão moveram-se de forma quase imperceptível, estava agora possuído pelo mais sincero ódio. Todo o sofrimento que acreditava que faziam Rivaldo passar somava-se a seus próprios últimos seis meses torturantes. Tudo seria resolvido naquela noite. Assim, Diego impulsionou-se na direção do ventre da mulher transformada em urso, disposto a matá-la.

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