Sei que parece estranho, mas minha terça-feira tinha mais cara de segunda do que a própria segunda feira. Tudo isso porque o primeiro dia útil da semana era só um dia comum de aulas, mas o segundo era o primeiro da semana em que cumpria minhas funções de aprendiz a tarde toda, gerando aquela típica sensação de obrigação a ser cumprida e consequentemente preguiça de fazê-lo. Naquele dia estava fazendo o que sempre fazia por ali, auxiliando a enfermeira e cuidando dos pacientes dentro de minhas limitações de aluna, vez ou outra limpando ou administrando poções sob a supervisão de minha "chefa" enquanto não haviam novos casos, e quando esta fechou o biombo do último leito - um aluno que havia se dado bem mal na aula de magizoologia - sabia que logo poderia ouvir os choros do jovem já que seu caso (apesar de não grave) teria um tratamento delicado. Assim estava sentada num dos bancos vazios da enfermaria de olho na porta e no livro de curandeirismo abaixo de meu nariz, quando uma figura bem conhecida apareceu no portal, fazendo com que me levantasse imediatamente - Hey, Mika! - O moreno era um amigo e colega de classe bem próximo, e meu momento de alegria pela visita do outro passa ao lembrar que estava na enfermaria e só iam até ali aqueles que tinham algo sério, o que faz com que vá para perto dele rápido - O que está fazendo aqui? Aconteceu algo? Tá tudo bem? Se machucou? - Bombardeio o mais velho com as perguntas antes mesmo de notar que tudo parecia certo, e suas palavras me tranquilizam - Ah, vai saber! Sei que você não é de correr risco, mas tá andando demais comigo e posso ter te passado o espírito da confusão, sei lá. - Mikael era do tipo de garoto que sentava sozinho em seu canto com seus pensamentos enquanto eu era a pessoa que não parava quieta e dava jeito de achar "sarna pra se coçar" como diria minha vó, só temia pelo dia que este tomasse gosto por essas aventuras também - Mas então que veio fazer aqui? Tá me escondendo algo, é?... Ou é só saudades da minha companhia incrivelmente maravilhosa mesmo? Pode dizer, desembucha. - Arqueio uma das sobrancelhas para o rapaz enquanto meus braços se cruzam diante do corpo, os olhos fixos nos dele.

Eu sabia que as vezes podia ser falante demais, mas geralmente esquecia daquele detalhe e me empolgava na liberação das palavras, principalmente se estivesse acompanhada de pessoas próximas como o garoto a minha frente. Somente após suas palavras é que paro e noto melhor os detalhes que indicavam seu estado precário de saúde, os olhos fundo, a palidez, mãos trêmulas e voz baixa ao falar. Mesmo que por alguns instantes ele tente dar um sorriso, não era um que demonstrava alegria ou descontração, sendo totalmente forçado para o momento. Sinto a consciência pesar um pouco no momento que o jovem relata os sintomas como sendo consequência da chuva que tomamos por incentivo de minha parte, fazendo com que uma careta de "ops" seja expressa em minha face, não permanecendo por muitos segundos — Foi só uma chuvinha! Não pensei que te faria mal assim. — Meu tom de voz agora era baixo em respeito as dores do outro, e olhando para o leito em que a enfermeira tratava outro aluno - que por sua vez soltava suas lamúrias - tento agilizar o processo do Morais o quanto fosse possível — Olha, meio que não sou liberada pra tratar você sem o consentimento da enfermeira, e tô bem afim de manter o meu salário, senão daria uma poção pra melhorar logo tudo isso, até sei qual usar... — Dor de cabeça e febre podiam ser resolvidos com poções que ficavam ao meu alcance no armário ou dois feitiços simples, mas como mal havia completado três meses de aprendizagem, ter qualquer atitude sem supervisão poderia fazer com que fosse expulsa ou trouxesse efeitos indesejados para Mikael, e por enquanto não queria nenhuma das duas coisas — Migo, posso até ser doida mas não sou homicida. Relaxa, tá? Logo ela termina ali e vem ver seu caso, não vou fazer nada. Enquanto isso acho melhor você deitar um pouco, repouso faz parte do tratamento. — Viro de costas para o moreno na intenção que esse me seguisse até um dos leitos livres, faço um gesto para que me entregasse a mochila e assim pudesse descansar da maneira certa. Um grito abafado é seguido do abrir de cortinas do leito em que a enfermeira estava, e não precisa de muitas palavras para que a mulher pergunte qual era o caso do meu amigo — Dor de cabeça forte e febre um pouco alta desde a noite. — Pelo jeito ainda não havia terminado seu trabalho com o jovem que agora choramingava ainda mais, e em palavras altas e claras a mulher me dá um norte do que deveria ser feito, não poupando detalhes sobre qual frasco de poção serviria para o momento e acabaria com os males. Mal ela fechou a cortina novamente segui para o armário com as poções, passando meus olhos por todos os recipientes até chegar no desejado. Já havia visto o mesmo sendo administrado diversas vezes na enfermaria e a descrição de seu rótulo batia com os sintomas e as especificações dadas por Mar, o que me faz ter a certeza de que era o correto. Levo para junto da maca de Mikael junto com um pequeno copo, enchendo-o pela metade conforme havia sido ordenado — Toma tranquilo que o gosto nem é ruim. — Falo enquanto deixo o copo nas mãos do paciente, oferecendo a ele um sorriso solidário de uma amiga.

Lanço um sorriso divertido para o outro diante de sua pergunta retórica, e sigo a brincadeira — Relaxa que quando eu for te embriagar vai ser com algo bem mais forte que uma poçãozinha de cura, e esse dia nem está tão distante. — Não dava pra saber até que ponto aquela frase era verdade ou mentira, mas faço a plena e mantenho a postura profissional apesar de ter terminado de sugerir que um dia estragaria o fígado do paciente a minha frente - mas afinal, o que o superior não vê/ouve, o superior não sente, não é mesmo? Faço questão de permanecer e observar até que a última gota do líquido seja ingerida pelo Morais, só então pegando de volta seu copo e a garrafa com poção, deixando ambos sobre a mesinha lateral próxima da mochila do jovem — Mas é claro... Que não. Migo, você teve febre alta, e mesmo que tenha tomado a poção, melhor ficar repousando aqui mais um pouco, tá? Tanto pra esperar fazer efeito quanto pra recuperar um pouco das energias. — Ele já havia dito que seu sono na noite anterior havia sido péssimo, e de nada adiantava só aparecer ali pra ir embora sem saber se havia sido efetiva a dose. Vou brevemente até o armário de materiais novamente e volto com um termômetro em mãos, deixando-o próximo para acompanhar o caso do moreno — Pode até ficar emburradinho, mas vou te fazer ficar pelo menos até a febre abaixar, nem que eu precise usar a minha varinha, e sabe que eu usarei mesmo. — Arqueio a sobrancelhas e cruzo meus braços olhando o outro com uma cara de desafio, demonstrando toda a minha seriedade e braveza nos alto de meu um metro e cinquenta e oito — Além do mais, quer sair daqui pra ficar fechado na biblioteca fazendo trabalhos? Eu, hein... —

Conversar com Mikael era sempre uma experiência no mínimo interessante. Ele até podia parecer um jovem de aparência bonita e jeito de quem era o rei de seu grupo, mas quem convivia sabia que sua personalidade era mais quieta e facilmente manipulável - pelo menos não por qualquer um, e carregava com graça o fardo de ser quem o colocava em certas enrascadas. Além de que apesar de estar na adolescência, tinha um medo tremendo da mãe e de decepcioná-la, o que contribuía para seu rendimento escolar invejável. Seu jeito de lidar com as pessoas seguia esse mesmo padrão de respeito que ás vezes me fazia pensar se na realidade ele não era um lorde inglês disfarçado no meio de pobres mortais, e era esse nível de conversa bizarra que discutíamos quando o outro foi fechando os olhos e caiu no sono, bem no meio de meu monólogo sobre o quão estranho era um rapaz de quinze anos na fase da rebeldia chamar a todos se senhor, senhora ou senhorita. Até penso em acordá-lo, mas lembro que minha função ali era fazê-lo ficar bem, então o observo por algum tempo até que outro aluno passe pela porta da enfermaria exigindo cuidados, desta vez tendo a enfermeira livre para cuidar do caso.
O fim da tarde chega, e com ele o fim do expediente. Mar havia deixado Mikael descansar até quando foi possível, mas como seu caso não era grave ele podia muito bem descansar nos dormitórios a partir de agora se desejasse, e ela me dá a missão de acordá-lo. Não haviam sinais que indicavam a piora de seu caso, e mesmo quando a mulher mede sua temperatura já normal o moreno não acorda. Ela se afasta e me aproximo do seu leito novamente, durante a tarde não passou muito tempo sem que eu não houvesse ficado ali por perto, e olho o jovem dormir tranquilamente por mais uns segundos até que subitamente dou leves tapinhas em sua bochecha até que seus olhos se abrem — Hey, princesa Aurora. — Pois é, sempre fui um poço de delicadeza na hora de acordar moribundos — Você dormiu demais e o príncipe fugiu com o cavalo branco, mas posso te oferecer companhia até seus aposentos reais. — Tá que Morais podia ficar bravo com aquela brincadeirinha, mas nem duraria muito tempo já que o garoto não conseguia passar muito tempo longe de mim — Você tá oficialmente de alta e está na hora de jantar. Como está a dor de cabeça? — Seguida de sua resposta pego sua mochila, entregando de volta ao dono — Ótimo. E como você tem a sorte de ser amigo de uma aprendiz de medibruxa, faço questão de te observar de perto pra ficar ainda melhor que antes, tá? E vou tentar não te fazer ficar doente de novo, prometo... Bem, talvez. — Com um sorriso leve sigo com o jovem para fora da enfermaria, e juntos vamos caminhando tranquilos até estar dentro do castelo.