As aulas de magizoologia eram as favoritas de Virgílio. O garoto ficava quase hipnotizado quando ouvia Miguel falar com tanta propriedade sobre a fauna mágica do mundo, mesmo que o professor considerasse sua escritora favorita como uma fraude. E falando em Madame Serena, estivera profundamente chateado nos últimos dias, desde que o ministério anunciara a captura da velha senhora. Não soubera exatamente quais foram as acusações, mas todos os livros de autoria dela que possuía foram confiscados por seus pais. Ele provavelmente nunca poderia lê-los de novo.

Virgílio era inocente demais para entender que as acusações contra a mulher eram verdadeiras. Ela escrevera dezenas de livros contendo informações falsas sobre magizoologia e vendera suas publicações inventadas como se possuíssem fatos legítimos. Esse delito somado a uma longa vida de crimes assegurariam a Madame Serena uma longa sentença em Pico Esperanza. Virgílio tentou afastar esses pensamentos e voltar para o presente, mas sua mente teimou em levá-lo de volta à última aula de magizoologia, a alguns dias atrás.

No que Virgílio pensava agora era na capacidade incrível que o professor tinha para se comunicar com os mais diversos tipos de criatura. Sentia admiração e até um pouco de inveja de Miguel, mas sabia que sua própria habilidade também era um dom extremamente raro. As pessoas não ficavam nervosas ou se afastavam quando o professor conversava com os animais, mas quando Virgílio usava a língua das cobras podia ouvir sussurros e cochichos a seu redor. Ele costumava acreditar que as pessoas talvez estivessem apenas surpresas, mas ultimamente uma dúvida sombria se plantara em sua mente: poderiam estar... com medo?

Ele suspirou cansado. "Esse dever de casa está mexendo com a minha cabeça". Pensou ele enquanto massageava as têmporas. Decidindo que seria melhor fazer uma pausa e voltar mais tarde, Monteiro deixou sua pilha de responsabilidades de lado e levantou-se para fazer uma caminhada. Ele adorava as paisagens ao redor de Castelobruxo. A imensa área verde abrigava vida e exuberância para onde quer que se olhasse. Aquilo era tão diferente dos muros da mansão de seus pais. Aqui fora provavelmente o primeiro lugar onde ele se sentira verdadeiramente livre. O garoto se dirigiu em direção ao riacho dos botos, deixando seus pés o guiarem.

Era um fim de tarde típico. O sol se punha detrás das árvores, tingindo o céu de diferentes tons. Seu calor ainda podia ser sentido, enchendo o mundo com seus últimos raios e preparando-se para ceder lugar à lua. Virgílio fazia uma pequena prece a Guaraci quando ouviu sons estranhos vindos de mais perto do riacho. Ignorando o bom senso (como sempre fazia), correu na direção dos barulhos se deparando com a cena de uma luta. Uma grande jiboia dava um abraço mortal numa pequena criatura que lutava desesperadamente pela vida. Um calafrio percorreu sua espinha quando ele chegou mais perto e percebeu que era um boto. Virgílio engoliu em seco, tentando acalmar-se e pensar numa estratégia.

- Saudações, senhora. - Disse ele tentando iniciar uma conversa com a serpente. - Uma belo fim de tarde que estamos tendo, não? - Suas palavras tentavam distrair a cobra, a fim de fazê-la perder força no esmagamento. - Não pude deixar de notar que a senhora está se preparando para jantar. Não acha essa presa muito pequena? - Ele forçou um sorriso nervoso. - Tenho certeza de que uma serpente tão distinta quanto a senhora pode conseguir algo muito melhor.

A jiboia virou a cabeça devagar na direção do garoto. Com certeza seus sentidos apurados já haviam percebido sua presença antes que chegasse ao riacho, mas parecera ignorá-lo até então de propósito. "Tenho fome, criança impertinente" Sua voz se projetou na mente de Virgílio. Pelo tom que usara não parecia muito satisfeita com sua presença ali. "E em minha experiência é melhor agarrar a comida enquanto posso." Virgílio quase sentiu pena da serpente faminta, mas logo lhe ocorreu que o boto que tentava esmagar poderia ser um estudante. Tentou lembrar-se dos jantares elegantes a que os pais lhe levaram. Como despejavam elogios sobre aliados e inimigos a fim de conseguir seu suporte. Pelo menos agora não poderia mais dizer que nunca aprendera nada de útil com os Monteiro.

- M-mas veja bem... - Ela gaguejou mas conseguiu se recompor no decorrer da frase. - ...uma presa dessas com certeza está abaixo de suas habilidades. - Enquanto falava, sua voz tornava-se mais firme e determinada. Precisava demonstrar segurança. Lembrou-se de mais das lições dos pais. Às vezes uma ofensa bem colocada poderia se o incentivo perfeito para ludibriar um adversário. - Ah. Eu entendo. - Ele deu de ombros, com certo ar de desdém, fazendo o possível para imitar a expressão de desprezo da mãe. - A senhora está envelhecendo não é mesmo? - Ele continuou com um tom debochado na voz.

"O que está insinuando?!" O tom furioso e ofendido da serpente quase fez com que Virgílio quebrasse a máscara, mas ele resistiu firme. - De sua idade, é claro! - Ele continuou com uma falsa expressão de tristeza. - Qualquer um pode ver que não consegue mais caçar como antigamente. Eu não deveria ter exigido tanto da senhora. Peço que me perdoe. - O corpo da serpente tremeu de raiva. Ela fixou seus olhos nos do rapaz. "Acha que não sou capaz de engoli-lo por inteiro?! De esmagar seus ossos como se fossem gravetos?!" O garoto engoliu em seco, mas sua estratégia desesperada estava funcionando. Quanto mais furiosa a jiboia ficava, mais afrouxava seu abraço mortal. Ele precisava continuar.

- Não precisa se fingir de forte, grande anciã. - A essa altura ele já mergulhara no papel, tornando sua atuação mais fácil. - Todos nós acabamos envelhecendo um dia. É apenas parte da vida. Num dia estamos abatendo grandes animais e no outro... - Ele lançou um olhar de pena  para o pobre boto antes de mandar mais uma alfinetada. - ...aceitamos a fraqueza da velhice e nos contentamos com a primeira coisa que aparece. - Naquele momento ele sabia que fora longe demais. A serpente sibilou furiosa, esquecendo-se temporariamente do boto para assumir uma posição de ameaça. Mas enquanto estava distraída, a pequena criatura escapou do abraço e jogou-se no riacho. Surpresa, a serpente tentou reagir indo atrás dele, mas o boto nadava rápido demais para que ela pudesse alcançá-lo. Havia perdido seu jantar.

Virgílio decidiu que não seria muito sábio ficar ali e esperar pela fúria da serpente, então bateu em retirada o mais rápido que pôde, escapando para a segurança de Castelobruxo. Enquanto corria ainda pôde ouvir os insultos da jiboia, sibilando xingamentos tão baixos que o deixaram chocado. Quando finalmente conseguiu retornar ao castelo estava suado e com a respiração ofegante, mas feliz por ter salvo uma vida.

Monteiro sentia um pouco de culpa por ter usado a manipulação de seus pais para atingir seu objetivo, mas acabara funcionando no fim das contas. Um novo senso de propósito passava pela mente do ofidioglota. Desejava tornar-se um grande magizoologista no futuro, mas ignorara seu maior advento até agora: o dom de conversar com serpentes. Uma pessoa normal provavelmente estaria assustada depois dos últimos acontecimentos, mas Virgílio só conseguia sentir o desejo de aprender. Precisava estudar mais sobre serpentes, assim como aprender mais sobre seus estranhos poderes.