O olhar geralmente preguiçoso parecia, naquela tarde, energético e intenso. Tinha leves vincos entre as sobrancelhas, os lábios ora apertados em uma linha firme, ora ligeiramente curvados pela sombra de um sorriso. Não sabia exatamente como reagir, é verdade... Mas sabia que a aula tinha lhe dado muito para pensar. Quer dizer... Não sobre sereianos e pernas, sequer sobre lobisomens... Mas algo na transfiguração de humanos para animais, na forma de animagos. Tornar-se, literalmente, a fera que rugia em seu peito.

Não era apenas capricho. Não era apenas pelo desafio de melhorar-se de alguma forma. Era a necessidade latente de proteger Gustav e Mikaela. Era o desejo de se sentir suficientemente forte para defender aqueles pelos quais seu coração batia. Precisava ser um animago! Já ultrapassava o querer ou não querer da questão. Era sua sina, podia sentir em cada célula que estremecia por todo seu ser. Estava absolutamente decidido: independente de quanto tempo precisasse treinar ou do que teria que abdicar para isso, seria, no fim do mês, um animago.

Estava tão fortemente convicto que subia os longos lances de escada batendo os pés. Não fraquejou sequer uma vez, ainda que não estivesse em sua melhor forma física. Ignorava todos os que passavam, absortos nos próprios pensamentos enquanto maquinava sozinho sobre o que acabara de conhecer. Qual seria a sensação de ter quatro patas? Ou mesmo, qual seria o sentimento de voar? Tudo parecia-lhe tão interessante quanto ligeiramente assustador. Precisaria lutar contra os instintos? Teria instintos para lutar? Tudo borbulhava em uma torrente confusa e rápida em sua cabeça.

Aliás, quando finalmente chegou à sala dos professores, encontrava-se tão completamente perdido por todos aqueles pensamentos que não vislumbrava, exatamente, uma forma correta de perguntar o que queria para a professora Torres. Precisou respirar fundo antes de bater na porta, podendo observar a loira no interior do cômodo amplo. Piscou algumas vezes, organizando porcamente a própria fala. Enchê-la de perguntas não parecia ser a melhor estratégia para conseguir sua orientação. Podia sentir o olhar da maior em si. Podia sentir a face queimar de vergonha. Droga.

— Bianca... — Começou, parando por meio segundo antes de corrigir as próprias palavras - em Hogwarts poucos eram os professores que gostavam de ser chamados pelo nome. — Perdão... É... Professora Torres, podemos conversar um pouco? É sobre a aula de transfiguração do sexto ano. Eu tenho algumas dúvidas sobre a matéria. — Agora parecia mais firme. Mais consigo mesmo. Fez-se então satisfeito, sorrindo de canto em uma ligeira aprovação. Esperou paciente enquanto a docente tomava uma decisão, fitando-a em um misto de admiração e curiosidade.

O sorriso tornou-se mais seguro assim que a docente o convidou para dentro, aproveitando a distancia que cobria entre a porta e o assento para tentar rapidamente organizar as ideias. Estava mais relaxado, de fato, por ver que a professora parecia decididamente aberta à tirar suas dúvidas. Talvez não fosse assim tão complicado, afinal, resolver aquela pequena questão que fazia seu corpo comichar em ansiedade.

— Com licença.  — Pediu antes de se sentar, tamborilando os dedos no tampo da mesa algumas vezes antes de finalmente conseguir uma linha de raciocínio satisfatória o suficiente para chegar no que queria. — Bom... Eu estive pensando sobre a aula de hoje e... Acho que entendi a diferença entre um animago e um humano transfigurado. Também entendi a diferença dos dois para com os lobisomens, sereianos e outras criaturas. O que eu ainda tenho duvidas é mais em relação ao modo de fazê-lo.

Teve consideração educada de manter a curiosidade presente em toda a fala, introduzindo rapidamente sobre a aula da professora de modo a sutilmente deixar registrado que havia se atentado para toda a teoria, não só para exatamente o assunto que queria tratar. Tinha visto, durante a classe, a quantidade exorbitante de alunos que tinha simplesmente ignorado boa parte da fala da maior, de modo que tornava-se uma cortesia o gesto de memorizar os detalhes.

— O que quero dizer é que Lobisomens podem ser mordidos. Sereianos herdam a linhagem sanguínea. Os humanos transfigurados são fruto de um feitiço... Mas quando chego nos animagos, me pergunto o que exatamente possibilita a transformação. — Finalmente começava a funilar o interesse, ainda de modo muito delicado. Não percebia na face da maior qualquer tipo de surpresa ou espanto... O que ou significava que estava indo muito bem, ou que era muito estúpido. Preferiu, claro, acreditar na primeira opção.

— De maneira um pouco mais sincera... Se eu supostamente quisesse me tornar um animago, precisaria de alguma coisa em especial que já nasce ou não em mim ou, teria, sei lá, algum tipo de "receita" para seguir no processo? — Finalizou um pouco mais hesitante, buscando por fim o olhar da mulher em um misto de sentimentos confusos. Assumia não só um desejo seu, quanto uma incapacidade de torna-lo realidade sozinho. Isso, para Morpheu, era ligeiramente vergonhoso.

Assim que Bianca começou o discurso sobre exigir muito de um bruxo, Morpheu se ajeitou um pouco na cadeira, mantendo-se o mais ereto possível. Sempre fora ensinado que uma conversa séria exigia uma boa postura, de modo a não só transpassar confiança, mas mostrar-se satisfatório aos olhos alheios. Não sabia exatamente até onde as maluquices de seus pais eram apenas só maluquices, de maneira que optou por apenas acreditar, não tendo tempo para dar-se ao luxo do erro. Precisava disso. Precisava daquelas instruções tal qual precisava de ar para viver.

— Tenho um E em transfiguração... Mas tenho certeza de que conseguiria um O.  — Adiantou-se com uma velocidade impressionante. "E" era a segunda melhor nota possível... Mas Morpheu raramente se contentava com o segundo melhor. — Até o quarto ano estudei em Hogwarts. Nunca tive contato com os costumes brasileiros ou com a fauna e flora. Acabei sofrendo um pouco quando vim para Castelobruxo, no quinto ano, e isso refletiu nos meus exames.

Era um informe quase irrelevante. Sabia, em alguma parte de si, que um E deveria ser suficiente para pelo menos iniciar os estudos em animagia. Excedia Expectativas, era isso que a nota significava. Tinha mais do que o mínimo para continuar avançando. Tranquilizou-se mentalmente com isso, apegou-se à essa convicção na tentativa de não mostrar-se hesitante perante a docente: ainda que fosse um bom aluno, dificilmente conseguiria alguma coisa se começasse a duvidar de si mesmo.

— O... O motivo de eu querer ser animago? — Repetiu, ligeiramente descrente. Mesmo em sua tentativa de fixar-se à pequenas certezas, a questão abaixou sua guarda, franzindo o cenho por alguns instantes de maneira quase inconsciente. A loira perguntara por algo que o rapaz ainda não tinha compartilhado sequer com Ozzy ou com Gustav. Perguntava algo que apenas admitira para si mesmo, naquela necessidade impulsiva de provar-se. As raízes da Sonserina que mantinham-se borbulhando em seu sangue.

— Quando eu vim pra cá... Não foi muito fácil. Meus pais me mandaram pra outro continente por... — Impediu as palavras antes mesmo de alcançarem sua língua. Contar para a maior que sua família o tinha afastado por sua sexualidade parecia pessoal por demais. — Por algo que eu fiz. Eu fiquei meio doente longe de tudo e me sentia como... Não sei, como uma morte em vida. Tinha perdido tudo. — As palavras saíam meio trémulas, a mente pulsando em busca de maneiras menos pessoais de contar sobre o que mais o enlouquecia.

— Eu tinha dois amigos, em Hogwarts.. E um ano antes tínhamos prometido sempre proteger um ao outro. Nunca esquecer ou se desfazer da amizade. — Também achou mais prudente evitar contar para uma responsável que tinha feito um voto perpétuo com os dois melhores amigos. — Eles conseguiram intercâmbio para Castelobruxo também. Deixaram tudo para trás e vieram me dar apoio. Foi ótimo... Mas me senti indefeso. Ser animago... Bom, ser animago seria como uma nova forma de tentar protegê-los, entende? — Tinha as bochechas coradas e os olhos novamente fixos na mesa, incapaz de erguer o olhar.

— Eu não tenho muito problema com os riscos... Quer dizer... Eu não sou suicida nem nada do tipo! Mas eu sei que posso conseguir se tentar o bastante. Sempre foi assim pra mim: só preciso me esforçar na medida certa. — Adiantou-se antes mesmo dos alertas de Bianca, a pose outra vez desfeita, meio curvado em uma timidez crescente. Seria estranho para si vê-la em sala de aula e ficar imaginando a imagem que ela teria de si. E também parecia impossível não pensar se ela comentaria com outros professores. Morpheu Byrne, o menino gótico e amedrontado que quer ser animago.

O sorriso de canto tomou-lhe os lábios, o olhar demonstrando a dúvida. Não queria discordar de uma professora, em especial uma que o estava ajudando, mas não pensava como ela. Gustav e Mikaela eram toda sua vida. Eram aquilo que preenchia seu coração e se espalhavam pela alma. Tudo bem, talvez não devesse fazer aquele tipo de coisa por todo mundo e coisa assim... Mas por eles... Bom, por eles o menor faria o que fosse preciso. Até porque...

— Eles também não precisavam pedir transferência, professora Torres. Eles podiam ter ficado em casa e mantido as vidas nos trilhos...  — Comentou, dando de ombros com um sorriso meio amarelado. Estava óbvio que não queria soar como um desafio... Mas algo em seu peito rugia em proteção dos amigos. — Mas eles vieram. Vieram por mim para um país completamente diferente, outro continente, costumes e línguas. Penso que quando vão longe por você, tudo bem ir longe pela pessoa também.

Apesar de estar orgulhoso de si por conseguir colocar em palavras aquilo que latejava em cada célula, apenas voltou a sorrir amarelado, dando de ombros como se fosse o menor dos detalhes. Sabia que Bianca tinha mais experiência e mais vivência para entender do que dizia... E tudo bem, talvez estivesse certa sobre a maior parte das pessoas. Porém não sobre o trio. Não quando tinham feito o voto perpétuo para permanecerem um ao lado do outro.

— Estudar os livros e não tentar nada sozinho. — Repetiu em meio ao sorriso, agora pouco mais confiante e mais à vontade. Era óbvio, até para si, que naquele assunto em particular era impossível contra-argumentar com a docente. Fora algo que Morpheu aprendera apenas na aula da loira e não tinha mesmo como saber o que fazia... Então apenas assentiu com firmeza. Não estava disposto a quebrar a confiança de Bianca, tampouco de estragar a única chance possível de alcançar seu objetivo. Se fosse para fazer, faria do jeito certo.

Anotou mentalmente que precisava se controlar durante... Bom, aparentemente durante vinte e cinco fucking dias... Porém também considerou mentalmente as vantagens que conseguiria caso mantivesse a cabeça na linha durante o processo. Com uma professora de transfiguração era quase impossível falhar. Focou-se em Gus e em Mika, pensou no quanto precisaram controlar a si mesmos até conseguirem chegar à Castelobruxo para dar suporte ao moreno. Eles também tinham uma cota de sacrifício... E aquele seria o seu.

— Em vinte e cinco dias com uma folha de mandrágora. Por enquanto parece... Bem, não tão impossível. — Comentou em um riso baixo, sabendo bem que aquela seria a parte mais simples de todo o processo. Não importava, claro. Estava determinado com todo o coração. — E não se preocupe, professora... Eu não sou de voltar atrás. Te vejo... Pelas cinco e meia, no campo de quadribol, tudo bem? — Pediu com tranquilidade, tomando os livros que a mulher o emprestara e levantando-se para sair.

Tinha muito o que ler e muito o que aprender se quisesse levar aquilo adiante. Não era apenas mais um feitiço qualquer. Era a transmutação do próprio corpo sem o uso da varinha, a habilidade que pouquíssimos bruxos possuíam por sua complexidade e pelo desafio exigido. Um compromisso que não poderia ser desfeito por qualquer pequena dúvida no caminho. Sorriu uma última vez para a docente antes de sair de sua sala, voltando para o próprio dormitório.