Depois de tantos anos trabalhando na confederação como membro da suprema corte bruxa, Lira achava que era hora de uma promoção, e ficou feliz quando seu chefe anunciou que haveria a abertura do cargo de "vice-presidente da suprema corte". Os olhos da sirena brilharam com a possibilidade, ela era o membro mais antigo ali, afinal. Se alguém fosse ser promovido tinha que ser ela. Os dias se passaram corridos e, então, Ares anunciou que Camélia Torres ocuparia o cargo, o que não fazia o menor sentido. A garota era uma criança em comparação a ruiva, não tinha experiência nenhuma e agora seria superior a ela? Inaceitável.

Ares, seu chefe e interesse amoroso, pode ter pensado que designar o cargo a ela seria errado, dado os comentários que já enchiam os corredores da COMASUL depois de terem sido visto juntos no festival das caiporas, mas bem que podia ter conversado com ela antes de qualquer coisa. Sorte ou não, alguns dias depois o próprio presidente chamou Lira para uma conversa e lhe ofereceu o cargo de chefe-executora das leis mágicas. — Uma seção inteira sob minha supervisão?— E desde então os dias da Pisinoe tem sido resumidos a trabalho. Assinar papeladas, revisar leis, enviar esquadrões para apreensão de bruxos, criaturas e objetos.

Aquela sexta-feira não era diferente de qualquer outro dia em sua jornada de trabalho. Era seu horário de almoço, por volta de uma da tarde, e a ruiva encontrava-se em sua sala. Os saltos estavam escondidos sob a mesa e os pés recebiam a brisa fria do ar-condicionado ligado enquanto Lira apreciava seu momento de descanso com os olhos vidrados na tela de seu celular. O tempo parecia passar bem mais rápido que o normal, seu horário de almoço é sempre assim. Naquele ritmo, logo acabaria seu horário de descanso e ela precisaria voltar pra colocar toda aquela papelada de trabalho em dia.

A mente da sirena vagava distraída enquanto assistia um video qualquer na famosa rede social bruxa, estava preocupada neste estado ha algum tempo. Aparentemente, o bruxo que ha havia atacado no mês anterior não estava sozinho, muito pelo contrário: existia um grupo inteiro de bruxos que achavam que seria uma boa ideia impor ainda mais preconceito e retrocesso no mundo bruxo brasileiro — talvez isso fosse um eco do que vinha acontecendo no mundo não-maj —, mas não se sabia muito sobre eles. Quantos? Onde viviam? O Círculo de Nêmesis não tinha sequer coragem de mostrar seus rostos para receber a devida fama e acabarem em uma cova rasa dois ou três dias depois, ela mesma se asseguraria disso. Não, o grupo de extremistas sequestrou o filho do presidente para ameaçar a estrutura atual da COMASUL e para isso usaram a visibilidade que o modelo tem — ou tinha, quem sabe se ainda continuava vivo.

O barulho de batidas em sua porta levou sua consciência de volta aos eixos e Lira notou que seu horário de descanso estava quase chegando ao fim. — Ah, sim, claro. — Respondeu prontamente quando bloqueou o celular para cessar toda a cantoria do vídeo de sua afilhada ao qual ela assistia com um sorriso bobo nos lábios. Alessandro, ou qualquer outro que a olhasse veria o mesmo que veem sempre: uma mulher serena e sem qualquer preocupação aparente. Quando se vive tantos anos você aprende uma coisa ou outra sobre o controle de seus sentimentos. — Sente-se, eu ainda tenho alguns minutos. Sobre o que gostaria de conversar. — Disse com o rosto marcado por um sorriso sem dentes. A pergunta do homem que ocupava sua vaga na suprema corte a pegou de surpresa. Os dois nunca foram amigos pra ele estar tão preocupado em saber como ela se sentia depois dos acontecimentos do dia anterior, o que só deixava claro que sua verdadeira pergunta era: você ainda vai continuar com seu cargo?

Lira respirou fundo, sem demonstrar qualquer sentimento, e recostou-se no apoio acolchoado da cadeira preta a suas costas. Com ambas as mãos repousando sobre suas coxas ela encarou Alessandro no fundo dos olhos, desejando que ele não tivesse entrado ali — não era um bom momento —, para deixar que a preocupação tomasse conta da frieza em seu rosto. — "Grupo estranho" que tem atacado seres mágicos como se isso fosse aceitável e sequestrou o filho do presidente. Grupo criminoso, você quis dizer? — Disparou com o tom de voz sério e uniforme, mas a retórica soou mais como uma afirmação do que com um questionamento. — Ah, perdão, pareci rude? Não foi minha intenção. — Sorriu, inclinando o corpo para frente. — Não sei como ficará a situação da COMASUL depois das declarações de ontem. — Fez questão de frisar a confederação para deixar claro que as criaturas mágicas não seriam as únicas afetadas caso houvesse alguma mudança política. — Ainda não tive contato com Farias, mas tenho certeza de que se houver qualquer mudança você e todos os outros colaboradores ficarão sabendo. — Respondeu encarando os olhos do homem sentado a sua frente. — Mas, de qualquer forma, você não precisa se preocupar. Vê? Estou ótima. E algo me diz que dessa vez Farias vai agir da maneira correta. — Finalizou, e voltou-se para uma das gavetas em sua mesa para procurar uma pasta de documentos qualquer. Talvez se Alessandro acreditasse que ela estava ocupada, sairia de sua vista o quanto antes.

Alessandro parecia desconfortável em sua própria pele. Talvez o fato de ter deixado tão na cara seu verdadeiro interesse com aquela conversa o incomodou, mas, inteligente e cheio de lábia que é, conseguiu contornar a situação bem. — Eu respeito sua opinião, não acredita que ele esteja em condições de tomar a decisão correta devido a toda situação com sei filho. — Repetiu as palavras do homem sentado à sua mesa e não pode deixar de notar o que ele insinuava. — Conhecendo-o tão bem, o que acha que ele fará? — Ela perguntou, com o olhar fixo no fundo de seus olhos, tentando ler o que quer que estivesse em sua mente. Escorregadio, aquele homem sempre sabia o que falar para safar-se de qualquer situação e foi exatamente assim que chegou ao cargo que ocupava dentro da confederação.

— Logicamente, defenderei os meus, supondo que esteja falando de toda a sociedade bruxa, claro. — Algumas das palavras ditas pela ruiva tiveram o tom suavizado, dessa vez, para que Alessandro notasse a provocação. Lira não estava ali para brincadeiras, ou suportar qualquer provocação. Não era uma incompetente como muitos pensavam, muito pelo contrário, trabalhou duro quando Membro da Suprema Corte e colheu todos os frutos que pode, por isso, com a reforma de RR, foi promovida ao segundo maior cargo de poder, enquanto os outros membros de seu antigo departamento — com exceção a Ian Ruzzo, que agora também era chefe — receberam suas cartas de demissão. — Concordamos que seria um grande retrocesso a suspensão da lei de integração dos seres... Mas, as vezes, é necessário parar e dar um passo atrás para ter um maior campo de visão, antes de tomar qualquer ação. — Disse, ainda séria. Ambas as mãos, agora, encontravam-se folheando o documento ao qual havia retirado de sua gaveta. — Com isso em mente, acredito que serei afastada. Se será temporária ou definitivamente, não sei te dizer, mas estou preparada para o pior. Ou melhor, para alguns. — Completou com um sorriso gracioso estampado nos lábios rosados. Não podia deixar de lado aquela provocação, ele estava pedindo.

— Agora, querido, se não for incômodo, eu tenho muito trabalho a fazer. — Disse, simpática, agora sorrindo. — E tenho certeza de que você também, não? — A retórica foi outra provocação. Ela sabia que a seção sete tinha muito trabalho, vivenciou isso por anos, e tinha plena propriedade para afirmar que o trabalho da seção nunca acabava. Pensar nisso despertou o desejo de fazer um telefonema a Ian para perguntar como estava lidando com a pressão de ser um chefe de seção sendo tão novo, provavelmente o mais jovem da história da COMASUL, se não lhe falhasse a memória.